Porque é que a avó deixou de aparecer? A luta de uma mãe contra o silêncio da sogra
— Mãe, porque é que a avó não vem cá mais? — perguntou a Leonor, com os olhos grandes e húmidos, enquanto brincava com o boneco que a minha sogra lhe tinha oferecido no Natal passado. O silêncio instalou-se na sala, pesado como uma manta molhada. O meu marido, Miguel, fingiu que não ouviu e continuou a folhear o jornal, mas eu sabia que aquela pergunta lhe doía tanto quanto a mim.
A verdade é que já passaram seis meses desde que a minha sogra, Dona Amélia, desapareceu das nossas vidas. Antes, era ela quem vinha buscar as crianças à escola quando eu tinha de ficar até mais tarde no trabalho. Era ela quem fazia arroz-doce aos domingos e contava histórias do tempo em que Lisboa ainda cheirava a sardinha assada e roupa lavada nos estendais. Agora, só restava o eco da sua voz nos corredores da casa e o cheiro do seu perfume guardado em lenços esquecidos.
No início, tentei justificar a ausência. “A avó está cansada”, dizia eu. “A avó tem andado ocupada.” Mas as crianças não são parvas. Sentem quando algo não está bem. E eu própria sentia-me cada vez mais inquieta, como se tivesse uma pedra no peito. O Miguel evitava falar do assunto. Quando lhe perguntava se tinha notícias da mãe, limitava-se a encolher os ombros.
Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me ao lado dele no sofá. — Miguel, isto não pode continuar assim. As miúdas sentem falta da tua mãe. Eu também sinto. O que é que aconteceu afinal?
Ele suspirou e olhou para mim com uma expressão cansada. — Não sei, Sara. A minha mãe sempre foi assim… Quando se sente magoada, fecha-se no seu mundo.
— Mas magoada com quê? — insisti.
Ele hesitou antes de responder. — Talvez tenha sido aquela discussão no aniversário da Leonor…
Lembrei-me imediatamente. Tinha sido um dia caótico: a casa cheia de crianças aos gritos, balões rebentados por todo o lado e eu a tentar controlar tudo sozinha porque o Miguel tinha ficado preso no trabalho. Dona Amélia chegou atrasada e, quando entrou na cozinha, viu-me a ralhar com as miúdas porque tinham entornado sumo no tapete novo. Ela aproximou-se e disse baixinho: “Sara, tens de ter mais paciência com elas.” Eu estava exausta e respondi mais alto do que devia: “Se acha que consegue fazer melhor, faça você!”
Naquele momento, vi nos olhos dela uma tristeza profunda. Mas nunca pensei que fosse suficiente para ela desaparecer assim.
— Achas mesmo que foi por isso? — perguntei ao Miguel.
Ele encolheu os ombros outra vez. — Não sei. A minha mãe sempre foi sensível…
Os dias foram passando e o vazio deixado por Dona Amélia tornou-se cada vez mais difícil de suportar. As crianças começaram a perguntar menos vezes por ela, mas eu sabia que era apenas uma forma de se protegerem da dor da rejeição. Eu própria sentia-me rejeitada. Afinal, sempre tentei agradar-lhe: fazia questão de cozinhar os pratos preferidos dela quando vinha cá jantar, lembrava-me do aniversário dela antes do Miguel… E agora sentia-me como uma estranha na própria família.
Um dia, decidi tomar uma atitude. Peguei no telefone e marquei o número dela. O coração batia-me tão forte que quase não conseguia ouvir o tom de chamada.
— Estou? — ouvi finalmente a voz dela, distante.
— Olá Dona Amélia… sou eu, a Sara.
Silêncio do outro lado.
— Olá Sara…
— Eu… queria saber se está tudo bem consigo. As meninas têm perguntado muito pela avó…
Ela suspirou. — Está tudo bem, obrigada.
— Dona Amélia… desculpe se fui brusca naquele dia do aniversário da Leonor. Estava cansada e não devia ter falado assim consigo.
— Não faz mal, Sara. Eu compreendo…
Mas percebi pelo tom de voz dela que não estava tudo resolvido.
— Gostávamos muito que viesse cá jantar um dia destes… As meninas iam adorar.
— Talvez um dia destes… — respondeu ela, antes de se despedir rapidamente.
Desliguei o telefone com lágrimas nos olhos. Senti-me impotente. Como é possível duas pessoas afastarem-se tanto por causa de um momento de fraqueza? Como é possível o orgulho falar mais alto do que o amor?
As semanas passaram e Dona Amélia continuou ausente. Comecei a reparar em pequenas mudanças nas minhas filhas: Leonor tornou-se mais calada e Inês começou a fazer birras sem motivo aparente. O Miguel fechou-se ainda mais em si próprio. A nossa casa parecia cada vez mais fria e silenciosa.
Uma tarde, fui buscar as miúdas à escola e encontrei a professora da Leonor à porta.
— Está tudo bem com a Leonor? — perguntou ela com um ar preocupado.
— Porque pergunta?
— Ela tem estado muito distraída nas aulas… E hoje desenhou uma família sem avó.
Senti um aperto no coração. Cheguei a casa e sentei-me com as miúdas no tapete da sala.
— Meninas… querem falar sobre a avó?
Leonor olhou para mim com lágrimas nos olhos. — A avó já não gosta de nós?
Abracei-a com força e tentei segurar as minhas próprias lágrimas. — Claro que gosta, meu amor… Às vezes os adultos também ficam tristes e precisam de tempo para ficarem bem.
Naquela noite, depois de adormecerem, sentei-me sozinha na cozinha e chorei baixinho para não acordar ninguém. Senti uma raiva surda contra Dona Amélia por nos ter deixado assim, mas também uma culpa imensa por talvez ter sido eu a causa deste afastamento.
No fim de semana seguinte, decidi ir ter com ela pessoalmente. O Miguel não quis vir comigo; disse que preferia esperar que ela desse notícias primeiro. Fui sozinha até ao prédio antigo onde ela vivia. Subi as escadas devagar, sentindo o peso de cada degrau.
Quando bati à porta, ouvi passos hesitantes do outro lado.
— Quem é?
— Sou eu, Dona Amélia… a Sara.
A porta abriu-se devagarinho e vi-a ali, mais pequena do que me lembrava, com os olhos vermelhos e o cabelo preso num carrapito desalinhado.
— Posso entrar?
Ela acenou com a cabeça e fez-me sinal para entrar na sala. O cheiro familiar do seu perfume misturava-se agora com um leve odor a mofo e solidão.
— Desculpe aparecer assim sem avisar… — comecei eu, nervosa.
Ela sentou-se à minha frente e olhou para mim durante uns segundos longos demais.
— Eu só queria perceber… porque é que deixou de vir cá? As meninas sentem tanto a sua falta…
Ela baixou os olhos e começou a mexer nas mãos.
— Sabe, Sara… às vezes sinto que não faço falta nenhuma. Que só atrapalho…
— Não diga isso! A Dona Amélia faz muita falta! Eu própria sinto falta das nossas conversas…
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Eu nunca quis ser um peso para vocês… Naquele dia senti-me tão inútil… Vi-a tão cansada e pensei que talvez fosse melhor afastar-me um pouco para não incomodar.
Aproximei-me dela e segurei-lhe nas mãos.
— Todos precisamos uns dos outros, Dona Amélia. Eu preciso de si aqui comigo! As meninas precisam da avó! Por favor… volte para nós.
Ela chorou baixinho durante uns minutos antes de me abraçar como nunca antes tinha feito.
Voltámos juntas para casa nesse dia. Quando as meninas viram a avó à porta ficaram tão felizes que até Inês esqueceu a birra habitual antes do jantar. O Miguel ficou surpreendido mas sorriu ao ver a mãe sentada à mesa outra vez.
A partir desse dia, prometi a mim mesma nunca mais deixar o orgulho ou o cansaço afastarem-nos das pessoas que amamos. Mas ainda hoje me pergunto: quantas famílias vivem presas neste silêncio? Quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? E vocês? Já sentiram este vazio em casa?