O Meu Marido Nunca Sai de Casa: O Peso de Uma Vida Compartilhada
— Vais sair hoje? — perguntei, tentando manter a voz neutra enquanto arrumava a loiça do pequeno-almoço.
O Rui nem levantou os olhos do telemóvel. — Para quê? Está um tempo horrível lá fora. — O tom era sempre o mesmo, indiferente, como se a minha pergunta fosse apenas mais um ruído de fundo.
Olhei pela janela. Chovia, sim, mas não era por isso que ele ficava. Já não saía há semanas, talvez meses. Desde que os pais dele se mudaram para o Brasil, depois de nos oferecerem esta casa enorme em Cascais, o Rui parecia ter perdido qualquer vontade de viver para além destas paredes.
No início, achei que era só uma fase. O Rui sempre foi reservado, mas agora… agora era como se ele tivesse desaparecido dentro de si próprio. E eu, presa com ele nesta casa luxuosa, sentia-me cada vez mais sufocada.
Lembro-me do dia em que nos mudámos para aqui. A mãe dele, a Dona Teresa, chorou ao entregar-me as chaves. — Agora é vossa responsabilidade — disse ela, com aquele sorriso tenso. O Rui parecia feliz, orgulhoso até. Eu também estava — quem não estaria? Uma casa com jardim, vista para o mar, tudo pago. Mas ninguém me avisou que o preço seria a solidão.
Os primeiros meses foram bons. Recebíamos amigos, fazíamos jantares. O Rui ainda ia ao escritório do pai, ajudava na empresa da família. Mas depois… tudo mudou. Primeiro foram as reuniões por Zoom, depois deixou de sair do quarto de trabalho. Quando os pais anunciaram que iam viver para o Brasil, ele fechou-se ainda mais.
— Não percebes que eu preciso de ti? — atirei-lhe uma noite, já sem conseguir conter as lágrimas.
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. — Eu estou aqui todos os dias! O que queres mais?
Queria mais. Queria sair, queria rir, queria sentir-me viva. Queria um marido que me olhasse nos olhos e me visse.
A rotina tornou-se insuportável. Acordávamos juntos, mas era como se cada um estivesse numa ilha diferente. Ele passava o dia inteiro no escritório ou na sala a ver televisão. Eu tentava ocupar-me: fazia voluntariado na igreja local, ia ao supermercado só para ver gente, inscrevi-me num curso de cerâmica. Mas nada preenchia o vazio.
A minha mãe ligava-me todos os dias.
— Filha, tu não podes continuar assim. Porque não vens passar uns dias cá a casa?
— Não posso, mãe. O Rui precisa de mim.
— E tu? Quem cuida de ti?
Essa pergunta ficou a ecoar dentro de mim durante semanas.
Comecei a reparar em pequenas coisas: o Rui já não se arranjava, usava sempre as mesmas roupas velhas; deixava pratos sujos espalhados; esquecia-se de datas importantes. No nosso aniversário de casamento, comprei um bolo e pus velas na mesa da cozinha. Ele nem apareceu para jantar.
Nessa noite, sentei-me sozinha à mesa e chorei até não ter mais lágrimas. Senti raiva dele, dos pais dele, de mim própria por ter deixado chegar a este ponto.
Uma tarde, enquanto regava as plantas do jardim, ouvi vozes vindas da rua. Era a vizinha do lado, a Dona Amélia, com o neto ao colo.
— Então menina Sofia, está tudo bem? Já não vos vejo há tanto tempo!
Sorri com esforço. — Está tudo bem, sim… O Rui anda muito ocupado.
Ela olhou-me com pena e mudou de assunto rapidamente.
Foi nesse dia que decidi confrontá-lo a sério.
— Rui, precisamos de falar — disse-lhe quando entrou na cozinha para buscar café.
Ele bufou. — Outra vez?
— Sim, outra vez! Isto não é vida! Tu não sais daqui há meses! Não falas comigo! Não fazes nada!
Ele largou a chávena com força na bancada. — Achas que é fácil para mim? Achas que eu pedi isto? Os meus pais foram-se embora! Fiquei sozinho a tomar conta disto tudo!
— Não estás sozinho! Eu estou aqui! Mas tu nem me vês!
O silêncio caiu entre nós como uma parede de vidro.
Nessa noite dormimos em quartos separados pela primeira vez desde que casámos.
Os dias seguintes foram ainda piores. Ele fechou-se completamente. Eu comecei a sair cada vez mais: ia ao café da vila só para ouvir conversas alheias; passeava na praia mesmo com chuva; sentei-me horas no carro só para não estar em casa.
Uma tarde encontrei o meu antigo colega da faculdade, o Miguel, no supermercado.
— Sofia? És tu? Estás tão diferente!
Sorri sem vontade. — A vida muda-nos…
Conversámos durante minutos que pareceram horas. Falámos do passado, dos sonhos que tínhamos. Quando me despedi dele senti uma pontada de saudade da pessoa que eu era antes deste casamento.
Nessa noite escrevi uma carta ao Rui. Não tive coragem de lha dar logo:
“Rui,
Sinto-me sozinha nesta casa cheia de coisas e vazia de vida. Amo-te, mas não consigo continuar assim. Preciso de ti presente, preciso de nós vivos outra vez. Se não consegues sair desta casa por ti, sai por nós. Ou pelo menos deixa-me sair sem culpa.”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e chorei até adormecer.
No dia seguinte acordei com barulho na cozinha. O Rui estava a preparar café e torradas — coisa rara.
— Podemos falar? — perguntou ele baixinho.
Sentei-me à mesa sem dizer nada.
— Li a tua carta…
O silêncio era pesado.
— Não sei o que se passa comigo — confessou ele finalmente. — Sinto-me perdido desde que os meus pais foram embora. Sempre vivi para agradar-lhes… Agora não sei quem sou sem eles aqui.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em meses e vi ali um homem assustado, frágil.
— Eu também me sinto perdida — disse-lhe. — Mas não podemos continuar assim.
Ficámos ali sentados muito tempo sem falar mais nada. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança misturada com medo.
Começámos terapia de casal semanas depois. Não foi fácil — ainda não é fácil. O Rui luta todos os dias contra a vontade de se fechar no quarto; eu luto contra o ressentimento e a solidão acumulada.
Às vezes penso em desistir; outras vezes lembro-me do amor que nos uniu e tento acreditar que ainda é possível reconstruir algo novo sobre as ruínas do que fomos.
Hoje escrevo esta história sentada no jardim daquela mesma casa onde já fui tão infeliz e onde agora tento reaprender a ser feliz ao lado do Rui — ou talvez apenas comigo mesma.
Pergunto-me: quantas pessoas vivem presas em casas bonitas mas cheias de silêncios? Quantos casamentos sobrevivem apenas porque ninguém tem coragem de sair ou mudar? E vocês… já sentiram este peso invisível?