Pai, quem sou eu para ti?

— Pai, quem sou eu para ti? — A voz da Matilde ecoou pelo corredor, fina e trémula, como se tivesse medo da resposta. Eu estava sentado à mesa da cozinha, com a cabeça entre as mãos, a tentar perceber como é que tinha deixado a vida chegar àquele ponto. O cheiro do café frio misturava-se com o som da chuva a bater nas janelas. A Inês estava fechada no quarto, desde que discutimos na noite anterior.

Olhei para a Matilde, os olhos dela brilhavam de lágrimas contidas. Tinha só seis anos, mas parecia carregar o peso de uma vida inteira. Senti um nó na garganta. Como é que se responde a uma pergunta dessas quando nem eu sabia quem era para mim próprio?

Tudo começou cedo demais. Eu tinha vinte e um anos, a Inês dezoito. Conhecemo-nos numa festa de verão em Cascais, entre risos e promessas de um futuro brilhante. Ela sonhava ser arquiteta, eu queria ser jornalista. Mas a vida não quis saber dos nossos planos. Quando a Inês me contou que estava grávida, o mundo parou. O meu pai gritou comigo durante dias, a minha mãe chorou baixinho no quarto. “Arruinaste a tua vida”, disse-me ele, olhos vermelhos de raiva e desilusão.

A família da Inês não foi melhor. O pai dela recusou-se a falar connosco durante meses. Só a avó materna apareceu com um bolo de laranja e um sorriso triste: “Os filhos são sempre uma bênção, mesmo quando vêm antes do tempo.” Mas bênção era coisa que não sentíamos. O dinheiro era pouco, os sonhos ainda menos.

Quando a Matilde nasceu, tudo mudou e ao mesmo tempo nada mudou. Lembro-me do primeiro choro dela, do medo de lhe pegar ao colo, das noites sem dormir. A Inês chorava muito, dizia que não sabia ser mãe. Eu tentava ser forte por ela, mas sentia-me perdido.

Os anos passaram depressa e devagar ao mesmo tempo. Arranjei trabalho num café perto da estação de comboios; a Inês ficou em casa com a Matilde. As contas acumulavam-se na gaveta da cozinha. Discutíamos por tudo: pelo dinheiro que não chegava, pelos sonhos adiados, pelas noites em claro.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as despesas do mês, a Inês atirou-me à cara:

— Tu nunca quiseste isto! Nunca quiseste ser pai!

Fiquei sem palavras. Talvez tivesse razão. Talvez nunca tivesse querido nada disto — ou talvez só não soubesse como lidar com tudo.

A Matilde crescia no meio deste caos silencioso. Era uma menina doce, mas calada. Desenhava famílias felizes na escola e escondia os desenhos quando chegava a casa. Um dia encontrei um deles: três bonecos de mãos dadas, todos a sorrir. Senti-me um impostor.

O tempo foi passando e as feridas foram ficando mais fundas. A Inês começou a sair mais vezes com amigas do liceu; eu ficava em casa com a Matilde, inventando histórias para adormecê-la. Uma noite perguntei-lhe:

— Gostavas que as coisas fossem diferentes?

Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes:

— Só queria que fosses feliz, papá.

Senti-me esmagado por aquela honestidade infantil. Como podia ela preocupar-se comigo quando era eu quem devia protegê-la?

No Natal passado, tudo explodiu de vez. A Inês chegou tarde do jantar de Natal da empresa onde trabalhava há pouco tempo. Trazia perfume estranho e um sorriso forçado.

— Estás diferente — disse-lhe eu.

Ela encolheu os ombros:

— Estou cansada disto tudo.

Discutimos até à madrugada. A Matilde acordou com o barulho e ficou à porta do quarto, abraçada ao urso de peluche.

— Não quero que se separem — sussurrou ela.

Nesse momento percebi que estávamos a falhar com ela — não por sermos jovens ou pobres, mas porque deixámos de lutar juntos.

A partir daí tentei mudar. Procurei outro emprego, comecei a estudar à noite para acabar o secundário. A Inês também mudou: voltou a desenhar, inscreveu-se num curso online de arquitetura. Tentámos falar mais um com o outro, menos aos gritos.

Mas as feridas não saram só porque queremos muito. Uma tarde, depois da escola, a Matilde chegou a casa calada. Perguntei-lhe se estava tudo bem; ela abanou a cabeça.

— Os meninos dizem que tu e a mãe vão separar-se — murmurou.

Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. Como é que as crianças sabiam mais sobre nós do que nós próprios?

Nessa noite sentei-me ao lado dela na cama:

— O amor às vezes muda de forma — expliquei-lhe — mas nunca desaparece completamente.

Ela olhou para mim:

— E eu? Também vais deixar de me amar?

O coração apertou-se-me no peito. Abracei-a com força:

— Nunca, Matilde. Nunca.

Os meses seguintes foram uma montanha-russa emocional. A Inês confessou-me que tinha conhecido alguém no trabalho; não sabia o que sentia por ele nem por mim.

— Não quero magoar-te — disse ela — mas também não quero continuar assim.

Fiquei sem chão. Pensei em sair de casa, mas depois lembrei-me da Matilde — dos desenhos escondidos, das perguntas difíceis.

Acabámos por decidir dar-nos algum tempo separados. Fui viver para casa dos meus pais durante uns meses; a Matilde ficou com a Inês durante a semana e comigo aos fins-de-semana.

Foi duro. O meu pai continuava distante; só falava comigo sobre futebol ou política. A minha mãe tentava animar-me com bolos e conselhos mal disfarçados:

— O importante é seres bom pai para a Matilde.

Aos poucos fui reconstruindo-me. Arranjei trabalho numa pequena editora em Lisboa; comecei finalmente a escrever artigos para jornais locais. A Inês acabou o curso online e conseguiu um estágio num atelier de arquitetura.

A Matilde adaptou-se melhor do que eu esperava — talvez porque sempre foi mais forte do que nós dois juntos.

Agora olho para trás e vejo tudo como um filme antigo: as discussões, os medos, os sonhos adiados… Mas também vejo os sorrisos da Matilde, as noites em que adormecia ao meu colo depois de ouvir histórias inventadas à pressa.

Hoje ela tem oito anos e continua a fazer perguntas difíceis:

— Pai, quem sou eu para ti?

E eu respondo sempre:

— És tudo o que tenho de mais precioso neste mundo.

Mas será suficiente amar alguém para compensar todos os erros? Será possível reconstruir uma família quando tudo parece perdido? Talvez nunca saiba as respostas certas — mas continuo aqui, todos os dias, a tentar ser melhor pai do que fui ontem.