Tarde Demais Percebi: O Meu Marido, as Suas Noites e Fins de Semana Sem Mim
— Vais sair outra vez, António? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo sabendo que a resposta já estava escrita no silêncio dele.
Ele nem sequer olhou para mim. Limitou-se a pegar nas chaves do carro e a ajeitar o casaco. — Tenho de ir ver o jogo com o Rui e o pessoal. Não me esperes acordada.
Ouvia estas palavras há meses, mas naquela noite soaram diferentes. Como se cada sílaba fosse uma pedra a cair-me no peito. Fiquei ali, parada na cozinha, com o cheiro do arroz de pato ainda no ar, a ouvir o som da porta a fechar-se atrás dele. Os miúdos já não eram miúdos — a Inês estava na faculdade no Porto, o João passava mais tempo no quarto do que comigo. E eu? Eu era apenas a sombra da mulher que fui.
Lembro-me de quando tudo era diferente. Quando António me olhava como se eu fosse o centro do mundo dele. Casámos cedo, numa igreja pequena em Sintra, rodeados de família e amigos. Ele prometeu-me amor eterno, e eu acreditei. Acreditei mesmo quando ele começou a chegar tarde do trabalho, quando os fins de semana passaram a ser “com os amigos”, quando as mensagens no telemóvel eram apagadas antes de eu poder perguntar quem era a “Sónia do escritório”.
— Mãe, está tudo bem? — perguntou o João, espreitando à porta da cozinha.
Sorri-lhe, tentando esconder as lágrimas que ameaçavam cair. — Está, filho. Vai estudar.
Mas não estava tudo bem. Não estava há muito tempo. Comecei a sentir-me invisível dentro da minha própria casa. Os jantares em família tornaram-se raros, as conversas resumiam-se ao essencial: contas para pagar, compras para fazer, recados para dar. O António já não me tocava. Dormíamos na mesma cama, mas parecia que havia um muro entre nós.
Uma noite, não aguentei mais. Esperei que ele chegasse — eram quase três da manhã — e sentei-me na sala escura à espera do som da chave na porta.
— O que é que se passa contigo? — perguntei assim que entrou.
Ele suspirou, cansado, como se eu fosse um peso de que queria livrar-se. — Não posso ter um bocado de paz nesta casa?
— Paz? António, tu já nem vives aqui! Só vens dormir e sair outra vez! — A minha voz tremeu, mas não recuei. — Diz-me a verdade: há outra mulher?
Ele desviou o olhar. O silêncio dele foi mais doloroso do que qualquer resposta.
— Não sei do que estás a falar — murmurou, antes de subir para o quarto.
Na manhã seguinte, acordei sozinha. A almofada dele estava fria. Senti-me ridícula por ter esperado alguma coisa diferente daquela noite.
Os dias passaram arrastados. A rotina tornou-se insuportável: acordar cedo para ir trabalhar no centro de saúde, fingir normalidade perante os colegas e pacientes, voltar para casa vazia. A Inês ligava de vez em quando, mas eu não tinha coragem de lhe contar o que se passava. Não queria preocupar os meus filhos com os meus problemas.
Foi a minha irmã, Teresa, quem me obrigou a encarar a realidade.
— Tu não podes continuar assim, Maria — disse ela num sábado à tarde, enquanto tomávamos café na varanda dela em Cascais. — Estás a definhar! O António não te merece.
— E o que é que queres que eu faça? — perguntei-lhe, desesperada. — Tenho 53 anos! Quem é que vai querer uma mulher como eu agora?
Ela apertou-me a mão com força. — Tu tens de te querer primeiro. Não podes viver à sombra dele para sempre.
As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a reparar em mim ao espelho: as rugas à volta dos olhos, o cabelo pintado para esconder os brancos, as mãos marcadas pelos anos de trabalho e de cuidados com a família. Quem era aquela mulher? Onde estava a Maria cheia de sonhos e esperança?
Numa noite chuvosa de novembro, decidi seguir o António. Senti-me uma adolescente tola, mas precisava de saber a verdade. Vi-o entrar num restaurante em Oeiras com uma mulher loira — não era a Sónia do escritório; era alguém mais nova, elegante, com um sorriso fácil. Vi-os rir juntos, trocar olhares cúmplices. Senti uma dor aguda no peito, como se me tivessem arrancado o chão.
Voltei para casa sem fazer barulho e chorei até adormecer. No dia seguinte, olhei para mim ao espelho e tomei uma decisão: não ia continuar a viver assim.
Quando o António chegou nessa noite, sentei-me com ele à mesa da cozinha.
— Eu vi-te ontem — disse-lhe calmamente. — Sei que tens outra pessoa.
Ele ficou pálido. Pela primeira vez em anos vi medo nos olhos dele.
— Maria…
— Não digas nada — interrompi-o. — Só quero saber uma coisa: ainda me amas?
O silêncio dele foi resposta suficiente.
Na semana seguinte pedi-lhe para sair de casa. Os miúdos ficaram chocados — o João chorou durante dias; a Inês veio de propósito do Porto para me abraçar e perguntar se eu ia ficar bem.
— Mãe, tu és mais forte do que pensas — disse ela entre lágrimas.
Os meses seguintes foram um desafio constante. Tive de aprender a viver sozinha depois de trinta anos de casamento. Tive medo do futuro, medo da solidão, medo de nunca mais ser amada. Mas aos poucos fui descobrindo pequenas alegrias: um passeio à beira-mar ao domingo de manhã; um café com amigas antigas; um livro lido até tarde sem ter de dar satisfações a ninguém.
A Teresa arrastou-me para aulas de dança na associação local. No início senti-me ridícula — duas mulheres de meia-idade entre jovens cheios de energia — mas depois comecei a rir outra vez. A sentir o corpo mexer-se ao ritmo da música foi como renascer.
O António tentou voltar algumas vezes. Mandava mensagens nostálgicas: “Sinto falta dos teus cozinhados”, “A casa está vazia sem ti”. Mas eu já não era a mesma Maria submissa e insegura.
Uma noite ligou-me bêbado:
— Maria… perdoa-me… fiz tudo mal…
Respirei fundo antes de responder:
— António, agora sou eu que já não te vejo como homem na minha vida.
Desliguei com as mãos a tremer mas com o coração leve pela primeira vez em anos.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei: liberdade, dignidade e uma nova relação comigo mesma. Ainda tenho medo do futuro? Sim. Mas também tenho esperança.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas em casamentos mortos por medo da solidão? Será que temos coragem de nos escolhermos primeiro? E vocês… já tiveram de se reinventar depois de perderem tudo?