Entre o Amor e o Sangue: A História de Lucia
— Não és suficiente para o meu filho, Lucia. — As palavras da Dona Helena ecoaram na minha cabeça como um trovão, mesmo depois de eu ter saído da sala de jantar deles, com as mãos a tremer e o coração apertado. Tomás estava ao meu lado, mas o silêncio dele doía mais do que qualquer insulto.
Sempre soube que a família dele era diferente da minha. Cresci num bairro em Almada, filha de um pedreiro e de uma empregada de limpeza. A casa era pequena, mas cheia de risos e cheiros de comida caseira. Os pais do Tomás viviam num apartamento enorme na Lapa, com móveis que pareciam peças de museu e uma empregada que nunca sorria. Quando comecei a namorar o Tomás, achei que o amor podia vencer tudo. Mas estava enganada.
— Mãe, por favor… — ouvi o Tomás murmurar, mas a Dona Helena nem pestanejou.
— Não há nada para discutir. O teu pai e eu já decidimos. — Ela olhou para mim como se eu fosse uma nódoa no tapete persa da sala.
O pai dele, o Dr. Álvaro, era ainda mais frio. Nem sequer me olhava nos olhos. Só disse:
— O nosso filho tem um futuro brilhante pela frente. Não podemos permitir que escolhas erradas o prejudiquem.
Saí dali com lágrimas nos olhos, mas não chorei na frente deles. Só quando cheguei à rua é que deixei cair tudo. Tomás veio atrás de mim.
— Lucia, espera! — Ele agarrou-me pelo braço. — Eu amo-te, mas não sei o que fazer…
— Não sabes? — gritei-lhe, sentindo a raiva misturada com tristeza. — Então escolhe! Ou ficas comigo ou ficas com eles!
Ele ficou calado. O silêncio dele foi a resposta mais cruel.
Os dias seguintes foram um pesadelo. A minha mãe percebeu logo que algo estava errado.
— O que se passa, filha? — perguntou-me enquanto descascava batatas para o jantar.
— Eles não me querem lá… — sussurrei, sentindo-me pequena.
Ela pousou a faca e abraçou-me.
— Não deixes ninguém dizer-te quanto vales. Tu és boa demais para quem não te sabe dar valor.
Mas as palavras dela não conseguiam tapar o buraco que se abriu no meu peito. Tomás deixou de me ligar. Mandou-me uma mensagem curta: “Desculpa, Lucia. Não consigo ir contra eles.” Senti-me traída, usada, descartada como se fosse um erro na vida dele.
Os meses passaram devagar. Tentei concentrar-me nos estudos — estava no último ano do curso de enfermagem no Politécnico de Setúbal — mas tudo me fazia lembrar dele: as músicas na rádio, os passeios à beira-rio, até o cheiro do café pela manhã.
Um dia, soube por uma amiga comum que os pais do Tomás já lhe tinham arranjado uma noiva: Mariana, filha de um advogado conhecido em Lisboa. Fizeram questão de anunciar o noivado em todas as redes sociais. As fotos dos dois juntos eram como facas no meu coração.
Comecei a evitar sair de casa. A minha mãe preocupava-se comigo.
— Não podes deixar que eles te destruam assim, Lucia! — dizia ela, quase a chorar por me ver tão em baixo.
O meu pai tentava animar-me à maneira dele:
— Olha filha, há muitos peixes no mar! E tu és uma mulher forte!
Mas eu sentia-me vazia. Até que um dia, quando estava a fazer voluntariado no hospital, conheci a Dona Rosa, uma senhora idosa que me disse algo que nunca mais esqueci:
— Sabes, menina, às vezes Deus fecha-nos uma porta porque há uma janela aberta noutro lado qualquer. Só temos de ter coragem para olhar à volta.
Essas palavras ficaram comigo. Decidi inscrever-me num programa de voluntariado em Moçambique depois de terminar o curso. Queria fugir de tudo: das memórias, dos olhares de pena dos vizinhos, da sombra do Tomás.
Antes de partir, recebi uma carta dele. Dizia que sentia a minha falta todos os dias, mas que não conseguia desiludir os pais. Que esperava que eu fosse feliz e encontrasse alguém melhor do que ele.
Rasguei a carta em mil pedaços e atirei-os ao vento da varanda do meu quarto. Pela primeira vez em meses, senti-me livre.
Moçambique foi uma lufada de ar fresco. Lá ninguém queria saber se eu era filha de pedreiro ou neta de costureira. Era só a enfermeira Lucia, aquela que fazia as crianças rirem mesmo quando estavam doentes. Aprendi mais sobre mim em seis meses do que em toda a minha vida.
Quando voltei a Portugal, já não era a mesma rapariga frágil e insegura. Arranjei trabalho num hospital em Lisboa e aluguei um pequeno apartamento perto do Campo Pequeno. A minha mãe dizia sempre:
— Tenho tanto orgulho em ti!
Um dia, ao sair do hospital depois de um turno longo, vi o Tomás à porta à minha espera. Estava diferente: mais magro, com olheiras profundas.
— Lucia… — começou ele, hesitante — Preciso falar contigo.
Ficámos sentados num banco do jardim ao lado do hospital. Ele contou-me que tinha terminado o noivado com a Mariana porque nunca conseguiu esquecer-me.
— Os meus pais não falam comigo há meses — confessou ele, com lágrimas nos olhos — Mas percebi tarde demais que não posso viver para agradar aos outros.
Olhei para ele e senti pena… mas já não era amor. Era como se aquela parte do meu coração tivesse morrido e renascido noutra pessoa.
— Tomás… Eu já não sou a mesma Lucia. Aprendi a viver sem ti. E agora sei que mereço alguém que lute por mim desde o início.
Ele baixou a cabeça e chorou baixinho. Abracei-o uma última vez e fui embora sem olhar para trás.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Sei que as feridas demoram a sarar, mas também sei que sou mais forte por causa delas. Às vezes pergunto-me: quantas Lucias existem por aí, presas nas teias dos preconceitos dos outros? E quantos amores são destruídos por famílias que confundem sangue com valor?
E vocês? Já tiveram de escolher entre o vosso coração e as expectativas dos outros? O que fariam se estivessem no meu lugar?