Quando a Minha Sogra Entrou na Minha Vida – Um Drama Familiar Português
— Não é possível, Miguel! Eu não aguento mais! — gritei, com a voz embargada, enquanto a água do arroz fervia e transbordava para o fogão.
Miguel olhou-me, cansado, com as olheiras de quem já não dorme bem há semanas. — Ela não tem para onde ir, Inês. É minha mãe. O que queres que eu faça?
A verdade é que eu sabia que Dona Lurdes não tinha para onde ir. O senhorio tinha vendido o prédio antigo onde ela vivia há mais de trinta anos, no coração de Almada. A reforma mal dava para as despesas e, depois da morte do meu sogro, ela nunca mais foi a mesma. Mas nada me preparou para o que seria viver com ela.
No início, tentei ser compreensiva. Preparei-lhe o quarto de hóspedes com os lençóis de linho que eram da minha mãe. Comprei-lhe as bolachas Maria que gostava e até escondi os meus livros de receitas para não parecer que queria ensinar-lhe nada. Mas Dona Lurdes era uma força da natureza. No segundo dia, já estava a reorganizar os armários da cozinha.
— Inês, assim não se guarda o azeite! Vai apanhar cheiro! — dizia ela, enquanto mudava tudo de sítio.
Miguel encolhia os ombros. — Deixa-a estar, ela só quer ajudar.
Mas não era só isso. Era o olhar crítico quando eu chegava tarde do trabalho, as perguntas sobre quando íamos ter filhos — como se fosse uma obrigação minha — e os comentários sobre a minha família: “A tua mãe nunca te ensinou a fazer um caldo verde decente?”. Cada frase era uma pequena facada.
As discussões começaram a ser diárias. Uma noite, depois de um jantar em que Dona Lurdes criticou o meu bacalhau à Brás à frente dos meus sogros e cunhados, fechei-me na casa de banho e chorei baixinho para ninguém ouvir. Miguel bateu à porta:
— Inês, por favor… Não faças disto um drama.
— Um drama? — sussurrei, sentindo-me invisível. — Isto é a minha vida!
Os dias passaram e fui-me apagando. No trabalho, os colegas perguntavam se estava tudo bem. Em casa, sentia-me uma estranha. Dona Lurdes ocupava todos os espaços: a sala cheirava ao perfume dela, as plantas eram regadas por ela, até o meu gato passou a dormir no quarto dela.
Uma tarde de domingo, ouvi-a ao telefone com uma vizinha:
— A Inês? É boa rapariga, mas não tem mão para a casa… O Miguel sempre foi muito mimado.
Senti o sangue ferver-me nas veias. Esperei que terminasse a chamada e entrei na sala.
— Dona Lurdes, podemos falar?
Ela pousou o telefone devagar.
— Diga, menina.
— Eu sei que está difícil para si… Mas esta também é a minha casa. Preciso que respeite isso.
Ela olhou-me com um misto de surpresa e mágoa.
— Eu só quero ajudar… Nunca pensei ser um peso.
Nesse momento, Miguel entrou na sala e percebeu logo o ambiente pesado.
— O que se passa aqui?
— Nada — disse Dona Lurdes, levantando-se. — Já percebi que não sou bem-vinda.
Miguel olhou para mim como se eu fosse a culpada de tudo.
— Inês… Não podias ter esperado? Ela está frágil!
Senti-me sozinha como nunca antes. Passei a noite acordada, ouvindo Dona Lurdes chorar baixinho no quarto ao lado. No dia seguinte, tentei falar com Miguel.
— Não posso continuar assim — disse-lhe. — Preciso de ti do meu lado.
Ele suspirou.
— E eu? Estou entre duas mulheres que amo. Achas que isto é fácil para mim?
Durante semanas vivemos num silêncio tenso. Dona Lurdes começou a sair mais vezes de casa, passava horas no jardim público da esquina. Eu sentia culpa por tudo: por querer o meu espaço, por não conseguir ser melhor nora, por ver Miguel tão distante.
Um sábado à tarde, recebi uma chamada do hospital: Dona Lurdes tinha caído na rua e partido o pulso. Corremos para lá. Quando cheguei ao quarto dela, vi-a tão pequena na cama branca que me senti uma criança outra vez.
— Desculpa — sussurrei, segurando-lhe na mão boa.
Ela sorriu-me com ternura.
— Também eu devia pedir-te desculpa. Só queria sentir-me útil outra vez…
Naquele momento percebi: ambas estávamos perdidas, tentando sobreviver à nossa maneira. Miguel abraçou-nos às duas e chorámos juntos.
Depois disso as coisas não mudaram de um dia para o outro. Mas começámos a falar mais: combinámos tarefas, demos espaço uma à outra e até rimos juntas das nossas diferenças. Dona Lurdes ainda reorganiza os armários de vez em quando — mas agora pergunto-lhe se precisa de ajuda.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se destroem por falta de diálogo? Quantas vezes deixamos de nos ouvir porque estamos demasiado ocupados a defender o nosso lugar? Talvez devêssemos perguntar mais vezes: “Como te sentes? O que posso fazer por ti?”