Sem berço, sem fraldas: O regresso a casa que me partiu o coração

— Não acredito, Miguel! Como é que chegamos a este ponto? — gritei, a voz embargada, enquanto pousava o ovo com a minha filha Leonor ainda adormecida lá dentro, no meio da sala fria e vazia.

O silêncio respondeu-me. Miguel estava encostado à ombreira da porta, com as mãos nos bolsos e os olhos vermelhos de cansaço. O cheiro a café requentado misturava-se com o perfume suave do champô de bebé que ainda pairava no ar desde o banho na maternidade. Eu tremia, não sabia se de raiva, de medo ou de pura exaustão.

— Desculpa, Rita… Eu tentei… — murmurou ele, sem me encarar.

Olhei à volta: não havia berço, não havia fraldas, nem sequer um pacote de toalhitas. A mala da maternidade estava pousada no chão, aberta, com as roupinhas minúsculas espalhadas como se fossem trapos sem valor. Senti uma onda de desespero a subir-me à garganta. Tinha sonhado tanto com este momento: o regresso a casa, o cheiro a bebé, os sorrisos cúmplices. Em vez disso, sentia-me uma estranha na minha própria vida.

A minha mãe ligou nesse instante. O toque estridente do telemóvel cortou o silêncio como uma faca.

— Então, filha? Já chegaram? Está tudo bem com a Leonor? — perguntou ela, ansiosa.

Engoli em seco. Não queria preocupá-la, mas também não conseguia mentir.

— Chegámos… mas… mãe, não está nada pronto. O Miguel… esqueceu-se de tudo. Não há berço, nem fraldas… — a voz falhou-me.

Do outro lado ouvi um suspiro pesado.

— Ai filha… já te disse tantas vezes que os homens são assim. Tens de ser tu a tomar conta das coisas. Ele anda tão cansado…

Fechei os olhos. Era sempre assim: desculpas para ele, exigências para mim. Desde pequena que me diziam que as mulheres aguentam tudo. Mas eu já não aguentava mais.

Miguel aproximou-se devagarinho e pousou uma mão no meu ombro.

— Eu vou já à farmácia. Vou buscar tudo. Prometo.

Afastei-me instintivamente.

— Agora? Agora é tarde! Tiveste nove meses! — gritei-lhe, sentindo as lágrimas escorrerem-me pela cara.

Leonor começou a chorar no ovo. O som era agudo, desesperado. Peguei nela com mãos trémulas e sentei-me no sofá. Ela agarrou-se ao meu peito como se também ela sentisse o caos à nossa volta.

Miguel saiu porta fora sem dizer mais nada. Fiquei sozinha na sala, com a minha filha nos braços e uma sensação de vazio tão grande que me doía fisicamente.

Lembrei-me do dia em que conheci o Miguel: era verão, estávamos numa festa popular em Sintra. Ele fez-me rir como ninguém e prometeu-me mundos e fundos. Quando engravidei, jurou que íamos ser uma família feliz. Mas agora parecia tudo tão distante.

A campainha tocou. Era a vizinha do lado, Dona Emília, uma senhora reformada que sempre espreitava por detrás das cortinas.

— Olá menina Rita! Já chegaram? Ai que linda menina! — exclamou ao ver Leonor.

Tentei sorrir.

— Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Hesitei por um segundo antes de responder:

— Não temos nada para ela… nem fraldas…

Dona Emília desapareceu por uns minutos e voltou com um saco cheio de fraldas e toalhitas.

— Guardei isto do meu neto para alguma emergência. As mães têm de se ajudar umas às outras — disse ela, piscando-me o olho.

Agradeci-lhe com um abraço apertado. Senti-me menos sozinha por um instante.

Quando Miguel voltou, trazia sacos das farmácias e do supermercado. Estava ofegante e olhava para mim como um cão perdido.

— Rita… desculpa mesmo… O patrão ligou-me ontem à noite a pedir relatórios para hoje… Eu tentei sair mais cedo mas não consegui…

Sentei-me à mesa da cozinha enquanto ele arrumava as coisas apressadamente. Ouvia-o falar mas as palavras já não me chegavam ao coração.

— E eu? Eu também trabalhei até ao último dia! Também estou cansada! Mas ninguém me pergunta se eu consigo! — atirei-lhe, a voz embargada.

Ele parou e olhou para mim finalmente nos olhos.

— Eu sei… falhei contigo. Falhei com a Leonor…

O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Lembrei-me das noites em claro durante a gravidez, das dores nas costas, dos medos que nunca partilhei com ninguém porque “as mulheres aguentam”. Lembrei-me das vezes em que Miguel prometeu mudar e nunca mudou.

Naquela noite dormimos em quartos separados. Leonor acordou de hora a hora e eu chorei baixinho para não a acordar. Senti-me mais sozinha do que nunca.

No dia seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar. Trouxe sopa congelada, roupa lavada e um olhar crítico para Miguel.

— Então isto é maneira de receber uma filha e uma neta em casa? — perguntou-lhe ela à queima-roupa.

Miguel encolheu os ombros e saiu para o trabalho sem dizer palavra.

A minha mãe sentou-se ao meu lado na cama e passou-me a mão pelo cabelo como fazia quando eu era pequena.

— Filha… tens de ser forte. Por ti e pela Leonor. Os homens mudam pouco… mas tu tens de lutar pelo que queres.

Olhei para Leonor a dormir no meu colo e senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que tinha de ser sempre eu a lutar? Porque é que ninguém perguntava ao Miguel se ele estava preparado para ser pai?

Os dias seguintes foram um borrão de fraldas sujas, noites sem dormir e discussões sussurradas para não acordar a bebé. Miguel tentava ajudar mas parecia sempre perdido, como se tudo aquilo fosse demasiado para ele.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia levantar-se para dar biberão à Leonor, explodi:

— Se não queres ser pai, diz-me! Eu faço isto sozinha!

Ele ficou calado durante tanto tempo que pensei que ia sair porta fora outra vez. Mas sentou-se ao meu lado na cama e chorou pela primeira vez desde que o conhecia.

— Tenho medo, Rita… Medo de falhar convosco… Medo de não ser suficiente…

Abracei-o sem saber se era por amor ou por piedade. Pela primeira vez vi o homem por detrás do marido: assustado, vulnerável, tão perdido quanto eu.

Os meses passaram devagarinho. Fomos aprendendo juntos — às vezes aos gritos, outras vezes em silêncio cúmplice. A Leonor crescia saudável apesar do caos à nossa volta. A Dona Emília continuava a aparecer com bolos caseiros e conselhos sábios. A minha mãe ligava todos os dias para saber se eu estava bem (e para controlar o Miguel).

Houve dias em que pensei em desistir de tudo: fazer as malas e ir viver para casa da minha mãe com a Leonor. Houve noites em que desejei voltar atrás no tempo e ser só namorados outra vez, sem esta responsabilidade esmagadora.

Mas depois olhava para a minha filha — os olhos grandes e curiosos iguais aos do pai — e percebia que já não havia volta atrás. Tínhamos de aprender a ser família à nossa maneira: imperfeita, barulhenta, cheia de falhas mas também cheia de amor.

Hoje escrevo esta história com Leonor a dormir ao meu lado e Miguel na cozinha a preparar o jantar (sim, finalmente aprendeu!). Ainda discutimos por coisas pequenas: quem vai buscar leite ao supermercado ou quem muda a próxima fralda explosiva. Mas aprendemos a pedir desculpa e a rir das nossas próprias trapalhadas.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas passam pelo mesmo? Quantas choram sozinhas no silêncio da noite enquanto toda a gente espera que sejam fortes? Será justo pedirem-nos tanto sem nunca perguntarem se estamos bem?