Quando o Passado Bate à Porta: A História de Maria de Vila Nova de Gaia

— Mãe, não podes estar a falar a sério! — gritou o Tiago, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o frio húmido daquela manhã de janeiro em Vila Nova de Gaia.

Olhei para ele, para o seu rosto crispado, tão parecido com o do pai quando era novo. O João, mais calado, fitava-me com olhos marejados, como se procurasse em mim uma resposta que eu própria não sabia dar.

— Ele está doente, Tiago. Não tem ninguém — tentei explicar, sentindo a voz tremer. — Não posso simplesmente virar-lhe as costas.

O Tiago levantou-se abruptamente. — Ele virou-nos as costas a nós! Ou já te esqueceste? — A sua voz era uma mistura de raiva e dor. — Dezasseis anos, mãe! Dezasseis anos sem uma carta, sem um telefonema! E agora aparece aqui, como se nada fosse?

O silêncio caiu pesado. Lembrei-me do dia em que o António saiu de casa. Era uma noite chuvosa de março. Ele entrou no quarto, fez a mala em silêncio e disse apenas: “Preciso de ir.” Não explicou, não pediu desculpa. Eu fiquei ali, sentada na beira da cama, a ouvir o som da chuva misturado com o dos meus soluços. Os meninos dormiam. No dia seguinte, tive de lhes inventar uma história qualquer sobre trabalho no estrangeiro.

Durante anos vivi entre a esperança e a raiva. Esperei cartas que nunca chegaram, atendi telefonemas que nunca foram dele. Vi os meus filhos crescerem sem pai, vi-me obrigada a ser forte quando só queria desabar.

Agora, dezasseis anos depois, ele estava ali. Mais magro, mais velho, com os olhos fundos e um cansaço nos ombros que nunca lhe conheci. Trouxe-lhe um prato de sopa quente e sentei-me à sua frente na sala pequena onde tudo parecia igual e tão diferente ao mesmo tempo.

— Maria… — disse ele, com a voz rouca. — Sei que não mereço nada disto. Sei que te magoei…

Desviei o olhar para a janela embaciada. Lá fora, os vizinhos passavam apressados, indiferentes ao drama que se desenrolava dentro daquelas paredes.

— Porque voltaste? — perguntei finalmente.

Ele suspirou. — Estou doente. O médico diz que é grave. Não tenho ninguém… Pensei nos meninos… pensei em ti.

As palavras ficaram suspensas no ar. Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim, misturada com pena e um estranho alívio por finalmente ter uma explicação.

Os dias seguintes foram um turbilhão. O Tiago recusava-se a falar comigo. O João vinha jantar em silêncio e saía logo depois. Os vizinhos começaram a comentar: “A Maria voltou com o António…”, “Depois de tudo o que ele lhe fez…”

No supermercado, senti os olhares curiosos das outras mulheres. A dona Rosa aproximou-se e sussurrou: — Tens coragem, Maria… eu não conseguia perdoar.

À noite, sozinha na cama, perguntava-me se estava a fazer bem. O António precisava de cuidados: levava-o ao hospital, preparava-lhe as refeições, ouvia-o tossir durante horas. Às vezes apanhava-o a olhar para as fotografias dos meninos pequenos na estante.

— Eles não me vão perdoar — disse ele um dia, com lágrimas nos olhos.

— Talvez não — respondi. — Mas isso é contigo e com eles.

O João foi o primeiro a ceder. Uma noite entrou na sala e ficou parado à porta.

— Pai… — murmurou.

O António ergueu os olhos e sorriu tristemente. — Joãozinho…

O João aproximou-se devagar e sentou-se ao lado dele. Falaram durante horas naquela noite. Ouvi-os rir baixinho e depois chorar juntos.

O Tiago continuava irredutível. Evitava-me sempre que podia e recusava-se a entrar em casa enquanto o pai lá estivesse.

Uma tarde chuvosa, fui ter com ele ao café onde costumava jogar às cartas com os amigos.

— Filho… — comecei, sentando-me à sua frente.

Ele nem me olhou nos olhos.

— Não percebo como consegues perdoar-lhe — disse entre dentes.

— Não é uma questão de perdoar ou esquecer — respondi baixinho. — É uma questão de humanidade. Ele está sozinho e doente. Se fosses tu no lugar dele… gostavas que te virassem as costas?

O Tiago abanou a cabeça e saiu sem dizer mais nada.

Os meses passaram devagar. O António foi piorando. Passava os dias no sofá, envolto numa manta, olhando para o vazio ou para as fotografias dos filhos.

Uma noite acordei com um barulho na sala. Fui ver e encontrei o Tiago ajoelhado ao lado do pai, a segurar-lhe a mão.

— Desculpa… — ouvi-o murmurar entre lágrimas.

O António sorriu-lhe com ternura e fechou os olhos pela última vez naquela madrugada.

O funeral foi simples. Pouca gente apareceu além de nós e alguns vizinhos mais próximos. Depois disso, o silêncio instalou-se em casa durante semanas.

Um dia sentei-me à mesa com os meus filhos.

— Fiz o que achei certo — disse-lhes, olhando-os nos olhos. — Talvez tenha errado muitas vezes na vida… mas não podia deixar alguém morrer sozinho por causa do passado.

O Tiago apertou-me a mão por cima da mesa.

Agora olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que é possível perdoar verdadeiramente quem nos magoou tanto? E vocês… conseguiriam abrir a porta ao passado se ele batesse à vossa porta?