“Outra vez a dormir? Podias ao menos fazer o pequeno-almoço para o Tiago!” – O Último Dia do Meu Casamento em Portugal
“Outra vez a dormir? Podias ao menos fazer o pequeno-almoço para o Tiago!”
A voz da minha sogra ecoou pelo telefone, cortando o silêncio pesado do quarto. Olhei para o lado e vi o Tiago, encolhido debaixo dos lençóis, a ressonar como se nada no mundo pudesse perturbá-lo. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era só pelo telefonema, nem pela voz crítica da Dona Lurdes. Era por tudo o que aquela frase carregava: a expectativa de que eu, sempre eu, fosse a responsável por tudo nesta casa.
“Dona Lurdes, bom dia. O Tiago está a dormir, sim. Mas ele também sabe fazer torradas, sabe?”
Do outro lado, ouvi um suspiro dramático. “Filha, tu sabes que ele trabalha muito. Não custa nada cuidares dele. Os homens precisam de mimo.”
Desliguei antes que dissesse algo de que me pudesse arrepender. Sentei-me na beira da cama e olhei para as minhas mãos. Estavam trémulas. Não era só cansaço físico – era um cansaço de alma, daqueles que se entranham nos ossos.
Levantei-me devagar e fui até à cozinha. O chão frio sob os pés descalços fez-me estremecer. Olhei para a bancada: loiça por lavar, migalhas do jantar de ontem, uma chávena com restos de café já seco. Era sempre assim. Eu limpava, eu cozinhava, eu organizava tudo. O Tiago? O Tiago dizia sempre: “Deixa lá isso, depois faço.” Mas nunca fazia.
Ouvia-o agora a mexer-se no quarto. “Rita? O pequeno-almoço?”
Respirei fundo antes de responder. “Está na cozinha, Tiago.”
Ele apareceu à porta, cabelo despenteado, olhar meio perdido. “Não fizeste torradas?”
“Faz tu, Tiago. Não sou tua mãe.”
Ele bufou e revirou os olhos. “Estás sempre maldisposta ultimamente. Nem pareces a mesma.”
Aquela frase ficou a pairar no ar como uma sentença. Não pareço a mesma? Talvez porque já não sou a mesma. Talvez porque me perdi algures entre as tarefas domésticas, as exigências da sogra e as promessas vazias do Tiago.
O dia arrastou-se entre silêncios pesados e pequenas discussões. Ao almoço, ele perguntou se eu podia passar na lavandaria buscar as camisas dele. Disse-lhe que não podia – tinha uma reunião importante no trabalho. Ele fez beicinho e mandou-me uma mensagem passivo-agressiva: “Se fosses uma esposa atenciosa…”
À noite, sentei-me no sofá com um livro que já não lia há meses. O Tiago estava agarrado ao telemóvel, a rir-se de vídeos parvos com o irmão dele, o João. De vez em quando olhava para mim e dizia: “Estás tão calada hoje.”
Não respondi. Por dentro, sentia-me a afundar num poço sem fundo.
Lembrei-me do início do nosso namoro: passeios à beira-rio em Lisboa, conversas intermináveis sobre sonhos e viagens, promessas de nunca nos deixarmos cair na rotina. Onde ficou tudo isso? Em que momento é que deixei de ser a Rita e passei a ser só “a mulher do Tiago”?
A campainha tocou. Era a Dona Lurdes, claro.
“Vim trazer umas sopas para o meu menino”, disse ela, entrando sem pedir licença.
Olhou para mim com aquele olhar de quem julga sem dizer nada. “Estás com má cara, Rita. Tens de cuidar mais de ti… e dele.”
Fui para o quarto antes que as lágrimas me traíssem.
No espelho vi uma mulher cansada, olheiras fundas e cabelo apanhado à pressa. Peguei no telemóvel e liguei à minha mãe.
“Mãe… não aguento mais.”
Ela ficou em silêncio uns segundos antes de responder: “Filha, ninguém pode viver por ti. Se estás infeliz, tens de pensar em ti.”
Desliguei e sentei-me na cama. O Tiago entrou pouco depois.
“O que é agora? Vais fazer drama porque a minha mãe veio cá?”
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas.
“Tiago… quando foi a última vez que me perguntaste se eu estava bem?”
Ele encolheu os ombros. “Estás sempre tão sensível…”
Levantei-me e comecei a tirar roupa do armário.
“O que estás a fazer?”
“Vou passar uns dias com a minha mãe.”
Ele riu-se, como se fosse uma piada.
“Não vais aguentar nem dois dias sem mim.”
Olhei para ele com uma tristeza funda.
“Talvez seja isso mesmo que preciso: perceber quem sou sem ti.”
A Dona Lurdes apareceu à porta do quarto.
“Rita! Vais abandonar o meu filho?”
Senti um nó na garganta mas mantive-me firme.
“Dona Lurdes, eu não sou mãe do Tiago. Sou mulher dele – ou era suposto ser.”
A mala estava pronta em minutos. Saí sem olhar para trás.
Na rua, o ar fresco da noite pareceu-me um abraço há muito esperado. Liguei à minha mãe:
“Mãe… posso ir para tua casa?”
Ela respondeu com aquela voz doce: “Claro que sim, filha.”
No caminho pensei em tudo o que tinha deixado para trás: os sonhos adiados, as noites mal dormidas, as discussões por coisas pequenas que escondiam problemas grandes.
Cheguei à casa da minha mãe e fui recebida com um abraço apertado.
“Estás magrinha…”, disse ela.
Chorei como há muito não chorava.
Nos dias seguintes senti uma mistura estranha de alívio e culpa. A Dona Lurdes ligava todos os dias – ora chorava ao telefone, ora me insultava por ter abandonado o “menino dela”. O Tiago mandava mensagens contraditórias: num dia dizia que me amava e queria mudar; no outro acusava-me de ser egoísta e ingrata.
Fui ao psicólogo pela primeira vez na vida. Contei tudo: as pequenas humilhações diárias, o peso das expectativas familiares, o medo de ficar sozinha.
“Rita”, disse-me ele numa das sessões, “às vezes salvarmo-nos é o maior ato de coragem.”
Comecei a redescobrir pequenos prazeres: tomar café sozinha numa esplanada em Setúbal, caminhar à beira-mar sem pressa, voltar a pintar como fazia antes de casar.
O Tiago apareceu à porta da minha mãe duas semanas depois.
“Rita… volta para casa. Prometo que vai ser diferente.”
Olhei-o nos olhos e vi o mesmo rapaz inseguro de sempre.
“Tiago… eu preciso de ser feliz sozinha antes de poder ser feliz contigo.”
Ele chorou pela primeira vez desde que o conheci.
Não voltei atrás.
Hoje olho para trás com tristeza mas também com orgulho. Tive medo de recomeçar – mas recomecei. Percebi que não posso mudar ninguém; só posso mudar-me a mim própria.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas em casamentos onde são mães dos maridos? Quantas têm coragem de partir? E vocês… já sentiram que precisavam de se salvar?