Correntes Invisíveis: O Dia em Que a Minha Família se Quebrou

— Outra vez deixaste os pratos por lavar, Sofia? — O tom do meu pai cortou o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu estava ainda de pijama, encostada à bancada da cozinha, a olhar para a janela embaciada pela chuva miudinha de março. O cheiro do café queimado misturava-se com o azedo dos restos de comida na pia.

— Não tive tempo ontem, pai. Cheguei tarde do trabalho — respondi, tentando não levantar a voz. Mas a minha mãe já estava a bufar, sentada à mesa com o jornal aberto, os olhos fixos nas notícias mas os ouvidos atentos à discussão.

— Sempre as mesmas desculpas! — atirou ela, sem me olhar. — Aqui ninguém faz nada, só eu é que me preocupo com esta casa.

O meu irmão mais novo, o Tiago, apareceu no corredor, a arrastar os chinelos. Olhou para mim com aquele ar de quem já sabia que ia sobrar para ele também.

— Se calhar devíamos fazer uma lista de tarefas — sugeriu ele, baixinho, mas ninguém lhe ligou.

O meu pai bateu com força na bancada. — Isto não é maneira de viver! Cada um faz o que quer e eu é que tenho de andar sempre atrás de vocês. Não foi para isto que trabalhei uma vida inteira!

Senti um nó na garganta. Tinha vinte e seis anos e ainda vivia com os meus pais porque o salário de rececionista mal dava para pagar as contas do mês. O Tiago, com dezanove, andava perdido entre empregos temporários e cursos que nunca acabava. A minha mãe reformara-se cedo por doença e passava os dias entre consultas e novelas. O meu pai, ex-motorista da Carris, reformado à força depois de um acidente, parecia carregar o peso do mundo nos ombros.

— Se não gostam disto, mudem-se! — gritou ele de repente. — Não sou vosso criado!

A minha mãe largou o jornal e levantou-se tão depressa que a cadeira quase caiu. — Não fales assim com eles! A culpa é tua também, sempre a mimar a Sofia como se fosse uma criança!

— Eu? Tu é que nunca lhe disseste que a vida custa!

— Basta! — gritei eu, sem conseguir controlar as lágrimas. — Vocês só sabem gritar! Acham que é fácil para mim? Acham que eu queria estar aqui?

O Tiago ficou parado no meio da cozinha, sem saber para onde olhar. O silêncio caiu pesado depois do meu grito. Senti-me envergonhada, mas também aliviada por finalmente ter dito aquilo em voz alta.

A minha mãe saiu da cozinha e bateu com a porta do quarto. O meu pai ficou a olhar para mim, os olhos vermelhos de raiva ou talvez de tristeza.

— Não sei onde foi que falhámos convosco — murmurou ele, antes de sair também.

Fiquei sozinha com o Tiago. Ele sentou-se à mesa e ficou a mexer no telemóvel.

— Desculpa — disse eu, sentando-me ao lado dele.

Ele encolheu os ombros. — Isto já não é casa há muito tempo.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante todo o dia. No trabalho, não consegui concentrar-me. Cada vez que olhava para o monitor via o rosto cansado do meu pai, as mãos trémulas da minha mãe, o olhar perdido do Tiago.

Quando voltei para casa ao fim do dia, encontrei a minha mãe na sala às escuras. Sentei-me ao lado dela no sofá.

— Mãe…

Ela não respondeu logo. Depois suspirou.

— Sabes… quando eu era pequena, a minha mãe também gritava muito comigo. Eu prometi a mim mesma que nunca ia ser assim com os meus filhos. Mas às vezes parece que não sei fazer outra coisa.

Abracei-a. Senti o cheiro familiar do seu perfume misturado com lágrimas.

— Eu também prometi que ia sair daqui cedo e dar-vos orgulho… mas falhei.

Ela apertou-me mais forte.

— Não falhaste nada. Só estamos todos cansados.

O Tiago entrou na sala nesse momento. Olhou para nós e sentou-se no chão, encostado ao sofá.

— Desculpem… — murmurou ele. — Eu devia ajudar mais.

O meu pai apareceu à porta da sala, hesitante. Parecia mais velho do que nunca.

— Podemos falar? — perguntou ele.

Sentámo-nos todos juntos pela primeira vez em meses. Falámos dos medos, das frustrações, das saudades do tempo em que tudo parecia mais simples. O meu pai contou-nos do acidente que o deixou sem trabalho e sem rumo. A minha mãe falou das dores que não passam e da solidão dos dias longos em casa. O Tiago confessou que tinha medo de nunca encontrar um caminho.

Eu chorei ao dizer-lhes que me sentia presa entre querer cuidar deles e querer viver a minha própria vida.

Naquela noite ninguém dormiu bem. Mas pela primeira vez em muito tempo senti que talvez houvesse esperança.

Os dias seguintes foram difíceis. As discussões não desapareceram de um dia para o outro. Mas começámos a tentar ouvir-nos mais e julgar menos. Fizemos mesmo uma lista de tarefas na porta do frigorífico — cada um com as suas responsabilidades.

Ainda assim, havia silêncios pesados à mesa e olhares magoados nos corredores. Uma noite ouvi os meus pais discutirem baixinho no quarto sobre contas atrasadas e dívidas escondidas. Senti-me impotente e revoltada por não poder ajudar mais.

Um sábado à tarde, enquanto limpava a casa com o Tiago, ele parou de repente e disse:

— Achas que algum dia vamos ser uma família normal?

Olhei para ele e sorri tristemente.

— Não sei se existe isso de família normal…

No domingo seguinte fomos todos juntos ao jardim da Estrela pela primeira vez em anos. Sentámo-nos na relva a ver as crianças correrem e os velhotes jogarem cartas. Por um momento esqueci-me das discussões, das contas por pagar, dos sonhos adiados.

Mas quando voltámos para casa tudo voltou ao mesmo: a tensão, os silêncios, as pequenas mágoas acumuladas como pó nos cantos da casa.

Às vezes dou por mim a pensar se algum dia vamos conseguir perdoar-nos uns aos outros pelas palavras ditas em momentos de raiva. Se é possível reconstruir uma família depois de tantas feridas abertas.

E vocês? Acham que há sempre volta depois de tudo se partir? Ou há coisas que nunca se conseguem remendar?