Sob o Mesmo Teto: Guerra com a Sogra e a Luta pelo Meu Próprio Valor
— Não mexas aí, Inês! — O grito cortou o silêncio da cozinha como uma faca. As minhas mãos tremiam enquanto pousava a travessa de bacalhau no balcão. Dona Amélia, de braços cruzados, olhava-me como se eu tivesse cometido um crime. — Já te disse mil vezes que o bacalhau se faz à minha maneira nesta casa!
Engoli em seco. Rui, sentado à mesa com o telemóvel, fingia não ouvir. Era sempre assim: eu e ela, frente a frente, numa dança de hostilidade velada. O apartamento era pequeno demais para três adultos e demasiado grande para tanto silêncio desconfortável.
Quando casei com o Rui, há cinco anos, nunca imaginei que a promessa de “para sempre” incluiria também a mãe dele. Na altura, Dona Amélia tinha acabado de ficar viúva e Rui insistiu que ela viesse viver connosco. “É só até ela se recompor”, disse-me. Mas os meses passaram, depois os anos, e ela foi-se entranhando na rotina da casa como uma sombra.
No início tentei agradar-lhe. Fazia-lhe chá ao pequeno-almoço, perguntava-lhe sobre as novelas, elogiava os seus cozinhados. Mas nada era suficiente. Se limpava a casa, era porque estava a insinuar que ela não sabia limpar. Se comprava flores para alegrar a sala, era porque queria gastar o dinheiro do filho dela. E quando finalmente engravidei, ouvi-a dizer à vizinha do lado: — Coitada da criança, vai crescer sem saber o que é uma família de verdade.
A gota de água foi naquela tarde de domingo. Estava exausta, com olheiras fundas e as costas doridas da gravidez avançada. Dona Amélia entrou na sala e fitou-me por cima das lentes grossas dos óculos.
— Não achas que já chega de estares aí sentada? A roupa não se vai passar sozinha.
Olhei para Rui à espera de apoio. Ele apenas encolheu os ombros.
— Mãe, deixa a Inês descansar um bocado…
— Descansar? — Ela bufou. — No meu tempo, uma mulher grávida fazia tudo! Não era esta mariquice de agora.
Senti o sangue ferver-me nas veias. Levantei-me devagar e encarei-a.
— Dona Amélia, com todo o respeito, mas não sou sua criada. E já agora, se quer tanto falar do seu tempo, talvez esteja na altura de trocar esses óculos antigos por uns que a deixem ver melhor quem sou eu nesta casa.
O silêncio caiu pesado. Ela ficou vermelha como nunca a tinha visto. Rui levantou-se num salto.
— Inês! — exclamou ele, mas eu já não conseguia parar.
— Estou farta de andar aqui a pisar ovos! Esta casa é minha também! Quero ser respeitada!
Dona Amélia saiu da sala sem dizer palavra. Ouvi-a bater a porta do quarto com força. Rui ficou parado à minha frente, olhos arregalados.
— Tinhas mesmo de dizer aquilo?
— Tinha — respondi, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. — Ou então nunca mais ia conseguir olhar-me ao espelho.
Nessa noite não jantámos juntos. O silêncio era tão denso que quase me sufocava. Fui para o quarto cedo, mas não consegui dormir. O bebé mexia-se dentro de mim como se sentisse toda aquela tensão.
No dia seguinte acordei com o cheiro a café acabado de fazer. Fui à cozinha e encontrei Dona Amélia sentada à mesa, olhos inchados mas postura firme.
— Senta-te — disse ela sem me olhar nos olhos.
Obedeci em silêncio.
— Sei que não sou fácil — começou ela, mexendo na chávena com as mãos trémulas. — Mas também não é fácil perder tudo e ter de recomeçar na casa do filho… com uma estranha.
As palavras magoaram-me mais do que qualquer insulto. Eu era uma estranha na minha própria casa?
— Não quero ser sua inimiga — disse-lhe baixinho. — Só quero ser respeitada.
Ela suspirou.
— Respeito ganha-se — murmurou. — E às vezes demora tempo… muito tempo.
Nesse momento percebi que ambas estávamos presas numa guerra antiga: ela a lutar para não perder o filho e eu a tentar construir uma família minha.
Os dias seguintes foram estranhos. Havia menos discussões, mas também menos palavras. Rui tentava animar-nos com piadas parvas ao jantar, mas ninguém ria de verdade.
Uma tarde ouvi Dona Amélia ao telefone com a irmã:
— A Inês? É teimosa… mas talvez seja isso que o Rui precisa.
Sorri sozinha na cozinha. Talvez houvesse esperança para nós.
O bebé nasceu numa madrugada chuvosa de novembro. Quando voltei do hospital, encontrei o quarto preparado com todo o carinho: lençóis lavados, peluches arrumados e um pequeno ramo de flores na cómoda.
Dona Amélia apareceu à porta com um sorriso tímido.
— Parabéns… mamã.
Pela primeira vez senti que éramos uma família — imperfeita, barulhenta e cheia de mágoas por resolver, mas família.
Claro que nem tudo mudou de um dia para o outro. Ainda discutimos por causa da sopa ou da temperatura do aquecedor. Mas agora há respeito nos nossos olhares — ou pelo menos uma trégua silenciosa.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem esta guerra invisível dentro das suas próprias casas? Quantas baixam a cabeça para evitar conflitos? E será que vale sempre a pena lutar pelo nosso lugar ou há batalhas que só nos desgastam?
E vocês? Já sentiram que precisam gritar para serem ouvidas dentro da vossa própria família?