A Determinação de Júlia: Entre o Passado e o Futuro da Família
— Não me venhas dizer que é só uma fase, mãe! — gritou a minha filha, Inês, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu tentava, em vão, acalmar o neto que chorava no quarto ao lado. O eco da sua voz atravessou-me como uma faca. Eu sabia que não era só uma fase. Sabia-o porque já tinha passado por isso, porque já tinha sentido o chão fugir-me dos pés quando o meu próprio casamento se desfez há mais de trinta anos. Mas como explicar-lhe isso sem parecer que estava a diminuir a sua dor?
O relógio da cozinha marcava quase meia-noite. O meu genro, Rui, tinha saído de casa há dois dias e Inês andava como um fantasma, arrastando-se entre os quartos, sem comer, sem dormir. O pequeno Tomás, com apenas cinco anos, sentia tudo. Chorava baixinho à noite e perguntava-me porque é que o pai não vinha dar-lhe as boas-noites. Eu respondia com histórias inventadas, mas cada mentira pesava-me no peito.
— Inês, filha… — tentei aproximar-me dela, mas ela afastou-se como se o meu toque queimasse.
— Não percebes! Tu nunca percebeste! Sempre disseste para aguentar, para ser forte… Mas eu não quero ser forte! Eu só queria que ele me amasse outra vez! — soluçou, deixando-se cair na cadeira da sala.
Sentei-me ao seu lado, sentindo o peso dos meus próprios erros. Lembrei-me do meu António, do silêncio que se instalou entre nós anos antes de ele partir para sempre. Lembrei-me das vezes em que engoli as palavras para não criar ondas, das noites em claro a pensar se devia ter lutado mais ou simplesmente ter ido embora.
— Sabes, Inês… — comecei, com a voz trémula — às vezes ser forte não é aguentar tudo. Às vezes ser forte é saber quando chega o momento de mudar.
Ela olhou para mim com raiva e tristeza misturadas.
— E mudaste? Ou ficaste porque tinhas medo do que as pessoas iam dizer? — atirou-me à cara.
Fiquei sem resposta. A verdade é que fiquei. Fiquei por medo do escândalo na aldeia, por medo de não conseguir criar os filhos sozinha, por medo de ser julgada. E agora via a minha filha a repetir o mesmo ciclo de dor e silêncio.
Na manhã seguinte, acordei cedo para preparar o pequeno-almoço. O cheiro do café fresco enchia a casa, mas ninguém parecia ter fome. Tomás apareceu na cozinha de pijama azul, arrastando o boneco preferido.
— Avó… O pai vai voltar hoje? — perguntou com uma voz tão pequena que me partiu o coração.
Ajoelhei-me ao seu lado e abracei-o.
— O pai ama-te muito, querido. Às vezes os adultos precisam de tempo para pensar. Mas eu estou aqui contigo, sempre.
Ele encostou a cabeça ao meu ombro e ficou em silêncio. Naquele momento percebi que a minha luta não era só pela minha filha ou pelo meu neto. Era por mim também. Por todas as mulheres da nossa família que tinham aprendido a calar-se para não incomodar.
Durante dias tentei ser o pilar da casa. Fui buscar Tomás à escola, fiz sopa de legumes como ele gostava, sentei-me ao lado de Inês nas noites em claro. Mas dentro de mim crescia uma raiva antiga — contra Rui por ter desistido tão facilmente, contra Inês por não conseguir reagir, contra mim mesma por não saber como ajudar.
Uma tarde, enquanto lavava a loiça, ouvi vozes na sala. Era Rui. Voltou para buscar algumas roupas e discutir com Inês sobre a guarda de Tomás. A discussão subiu de tom rapidamente.
— Achas que vou deixar o meu filho contigo depois do que fizeste? — gritou Rui.
— O que eu fiz? Foste tu que te foste embora! — respondeu Inês entre lágrimas.
Entrei na sala sem pensar duas vezes.
— Basta! — gritei eu, surpreendendo até a mim mesma. — Isto não é vida para ninguém! Nem para vocês, nem para o Tomás!
Eles olharam para mim como se me vissem pela primeira vez.
— Rui, tu és pai do Tomás e isso nunca vai mudar. Mas se continuarem assim vão destruir tudo o que ainda resta desta família.
Rui baixou os olhos e Inês começou a chorar em silêncio. Senti-me velha e cansada, mas também determinada como nunca antes.
Depois daquela noite as coisas mudaram devagarinho. Rui começou a vir buscar Tomás aos fins-de-semana e Inês procurou ajuda psicológica no centro de saúde da vila. Eu continuei ali, entre os dois mundos: o da minha filha ferida e o do meu neto inocente.
Mas nem tudo era fácil. As vizinhas cochichavam à porta do café sobre “a filha da Júlia” e eu sentia os olhares pesados quando ia à missa ao domingo. Uma tarde encontrei a minha irmã Maria no mercado e ela não resistiu:
— Sempre disse que devias ter sido mais dura com a Inês… Agora vê no que deu!
Engoli em seco e respondi:
— Cada um faz o melhor que sabe, Maria. Não somos perfeitas.
À noite chorei sozinha na cozinha. Senti-me falhada como mãe e avó. Mas depois lembrei-me do sorriso tímido do Tomás quando lhe contei uma história antes de dormir. Lembrei-me da Inês a agradecer-me baixinho por estar ali.
O tempo foi passando e as feridas começaram a sarar devagarinho. Inês arranjou um trabalho novo numa loja de roupa no centro da cidade e começou a sorrir outra vez. Rui arranjou um apartamento perto da escola do Tomás e as visitas tornaram-se menos tensas.
Um dia sentei-me com Inês à mesa da cozinha enquanto ela bebia chá.
— Mãe… — disse ela — achas que algum dia vou ser feliz outra vez?
Peguei-lhe na mão e olhei-a nos olhos.
— Acho que já estás a ser feliz agora… Só ainda não reparaste.
Ela sorriu pela primeira vez em meses.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que passámos: as discussões, os silêncios, as noites em claro… E pergunto-me: quantas famílias vivem presas ao medo do que os outros vão dizer? Quantas mulheres sacrificam a própria felicidade pelo bem dos filhos ou pela aparência?
Se pudesse voltar atrás faria tudo igual? Não sei… Mas sei que lutei com tudo o que tinha pelo futuro da minha família.
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam para proteger quem amam?