A Casa no Cruzamento: Entre o Passado e o Futuro
— Não vais vender a casa do teu pai! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu, parado à porta da sala, sentia o peso de cada palavra como se fossem pedras atiradas ao peito.
O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma antigo dos móveis de madeira escura, testemunhas silenciosas de tantas discussões e reconciliações. A minha mulher, Inês, estava na cozinha, fingindo arrumar a loiça, mas eu sabia que ouvia cada sílaba, cada suspiro. O silêncio entre mim e a minha mãe era apenas interrompido pelo tique-taque do velho relógio de parede, herança do meu avô.
— Mãe, nós precisamos de um sítio nosso. A casa está velha, precisa de obras que não conseguimos pagar. Eu e a Inês queremos começar uma família, mas aqui… — tentei explicar, mas ela cortou-me a palavra com um gesto brusco.
— Aqui foi onde cresceste! Onde o teu pai morreu! Achas que é só tijolo e cimento? — A voz dela tremeu. — Tu não percebes o que é perder tudo…
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era justo. Eu também tinha perdido o meu pai. Também sentia falta dele todos os dias. Mas a vida não parava por causa da dor.
Lembrei-me do dia do funeral. A chuva caía pesada sobre o cemitério de São João. A minha mãe agarrada ao caixão, soluçando, e eu sem saber como consolar aquela mulher que sempre me pareceu invencível. Desde então, ela nunca mais foi a mesma. A casa tornou-se o seu refúgio e a sua prisão.
— Mãe, não quero apagar o passado. Mas preciso construir o meu futuro — disse, baixando a voz.
Ela virou-me as costas e saiu para o quintal, onde as roseiras que o meu pai plantara continuavam a florir, teimosas como ela. Fiquei sozinho na sala, sentindo-me um traidor.
Inês aproximou-se em silêncio e pousou a mão no meu ombro.
— Não te culpes. Ela tem medo de ficar sozinha — sussurrou.
— E eu tenho medo de nunca sair daqui — respondi, quase sem voz.
As semanas seguintes foram um inferno. Cada jantar era uma batalha fria. A minha mãe deixava recados passivo-agressivos pela casa: fotografias antigas espalhadas pela mesa, cartas do meu pai deixadas em cima da minha almofada. Uma noite, encontrei-a sentada no escuro da sala, abraçada ao casaco velho do meu pai.
— Ele nunca teria vendido esta casa — murmurou ela, sem me olhar.
— Talvez não — respondi. — Mas ele também queria que eu fosse feliz.
Ela não respondeu. O silêncio era mais pesado do que qualquer discussão.
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. O meu chefe, o senhor Almeida, chamou-me ao gabinete.
— Está tudo bem em casa? Pareces distante.
Quase lhe contei tudo ali mesmo, mas limitei-me a sorrir e dizer que eram apenas preocupações normais. Mas nada era normal. Sentia-me dividido entre duas mulheres: a mãe que me deu tudo e a esposa com quem queria construir tudo.
Uma tarde, depois de mais uma discussão acesa, saí de casa sem destino. Acabei por ir até à praia da Figueira da Foz, onde costumava ir com o meu pai pescar quando era miúdo. Sentei-me na areia fria e deixei as lágrimas correrem livremente. Porque é que crescer dói tanto?
Quando voltei para casa já era noite cerrada. Encontrei Inês à minha espera no corredor.
— Não podemos continuar assim — disse ela, com firmeza. — Ou vendemos a casa e começamos a nossa vida… ou ficamos presos neste limbo para sempre.
Sabia que ela tinha razão. Mas como convencer a minha mãe?
Decidi procurar ajuda do meu tio António, irmão mais novo do meu pai. Ele sempre foi o mediador da família.
— Maria sempre foi teimosa — disse ele, enquanto bebíamos um copo de vinho na varanda dele. — Mas ela ama-te mais do que à própria vida. Tens de lhe mostrar que não vais abandoná-la.
No domingo seguinte, sentei-me com a minha mãe à mesa da cozinha. O sol entrava pela janela, iluminando as rugas do seu rosto cansado.
— Mãe… — comecei, com voz trémula — se vendermos a casa, prometo que nunca te vou deixar sozinha. Podes vir viver connosco ou arranjamos uma casa perto. Mas preciso que confies em mim.
Ela olhou-me nos olhos durante longos segundos. Vi ali todo o medo, toda a tristeza… mas também amor.
— E se eu não conseguir? — perguntou ela baixinho.
— Então vamos tentar juntos — respondi.
Nos dias seguintes começámos a arrumar a casa aos poucos. Cada caixa era uma viagem ao passado: brinquedos meus de infância, cartas de amor dos meus pais, fotografias amarelecidas pelo tempo. Rimos e chorámos juntos enquanto embalávamos memórias.
No dia em que os compradores vieram visitar a casa pela primeira vez, senti um nó na garganta. A minha mãe ficou sentada no alpendre, olhando para as roseiras.
— Sabes… — disse ela — às vezes penso que se fechar esta porta vou perder tudo o que fui.
Abracei-a com força.
— Não vais perder nada, mãe. Tudo o que somos levamos connosco.
A venda foi difícil, cheia de burocracias e dúvidas. Houve noites em que quase desisti. Inês apoiou-me sempre, mesmo quando discutíamos por causa do dinheiro ou dos prazos apertados para encontrar um novo lar.
No dia da mudança, olhei para trás uma última vez antes de fechar a porta da velha casa no cruzamento das ruas da minha infância. Senti um misto de alívio e saudade.
Agora vivemos num apartamento pequeno mas acolhedor em Coimbra. A minha mãe acabou por aceitar viver num rés-do-chão perto de nós. Ainda vai todos os dias cuidar das suas roseiras no jardim comunitário e às vezes fala do passado com um sorriso nostálgico.
Às vezes pergunto-me: será possível honrar as nossas raízes sem deixar que elas nos prendam? Quantos de nós já tiveram de escolher entre o passado e o futuro? E vocês… já sentiram este aperto no peito ao fechar uma porta para sempre?