Sol para Outras Vidas: A História da Pequena Leonor e o Último Adeus

— Sofia, tens mesmo a certeza? — A voz do Miguel tremia, quase impercetível, enquanto segurava a minha mão com força. O cheiro a desinfetante do hospital misturava-se com o perfume suave do champô da Leonor, ainda impregnado na fronha da almofada. Eu olhava para ela, tão pequena naquela cama enorme, ligada a máquinas que zumbiam como um relógio prestes a parar.

O relógio da parede marcava 3h17. O tempo parecia suspenso, como se o mundo inteiro estivesse à espera da minha resposta. Lembrei-me do primeiro choro da Leonor, do seu sorriso desdentado quando via o pai chegar do trabalho, das manhãs em que corria pelo corredor de casa com o pijama dos patinhos. Como é que se diz adeus a tudo isso?

A médica, Dra. Teresa, entrou no quarto com passos leves. Trazia nos olhos uma tristeza que só quem já viu demasiados finais conhece. Sentou-se ao nosso lado e falou baixinho:

— Sei que é impossível pedir-vos isto, mas há três crianças em lista de espera. Se decidirem avançar, a Leonor pode ser o sol delas.

Miguel virou o rosto para a janela. Lá fora, Lisboa dormia sob uma chuva miudinha. Eu senti o peito apertar, como se alguém me tivesse roubado o ar. Queria gritar, queria fugir dali, mas não podia. Era mãe. E ser mãe é amar até quando dói.

Lembrei-me da última vez que estivemos todos juntos na casa dos meus pais, em Sintra. A Leonor corria atrás do primo Tomás, tropeçando nos próprios pés. A minha mãe ria-se e dizia:

— Esta miúda tem energia para dar e vender!

Agora, tudo parecia tão distante. O telefone tocou na mesinha de cabeceira — era a minha irmã, Mariana.

— Sofia? Como está a Leonor? — A voz dela vinha embargada.

— Não mudou… Mariana, achas que estou a fazer o certo? — perguntei, com lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

— Não há certo nem errado… Só há amor — respondeu ela.

Miguel voltou-se para mim, olhos vermelhos:

— Se fosse comigo… eu queria que alguém fizesse isto pela nossa filha.

A decisão foi tomada ali, entre silêncios e soluços. Assinei os papéis com mãos trémulas. Senti-me despida, como se tivesse deixado parte de mim naquele papel.

Na manhã seguinte, as enfermeiras entraram no quarto com vozes suaves:

— Bom dia, princesa Leonor…

Cantaram baixinho “Tu és o meu sol”, uma canção que eu própria lhe cantava para adormecer. Sentei-me ao lado dela e acariciei-lhe o cabelo castanho-claro.

— Mamã está aqui, meu amor…

Miguel ajoelhou-se ao nosso lado e beijou-lhe a testa gelada. O tempo parou. O mundo inteiro cabia naquele quarto.

Quando finalmente desligaram as máquinas, senti um vazio impossível de descrever. Não chorei logo. Fiquei ali sentada, a olhar para ela, esperando que respirasse de novo, que abrisse os olhos e dissesse “mamã”. Mas não aconteceu.

Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. As pessoas vinham ter comigo no funeral e diziam coisas como “foi um anjo”, “Deus sabe o que faz”, “ela agora vive noutros meninos”. Eu sorria por fora e gritava por dentro.

Em casa, o silêncio era ensurdecedor. O quarto da Leonor ficou intacto durante meses. O Miguel atirou-se ao trabalho; eu afundei-me em recordações. A Mariana vinha todos os dias trazer sopa e abraços apertados. A minha mãe rezava baixinho no sofá.

Uma tarde, recebi uma carta do hospital. Era da mãe de uma das crianças que recebeu um órgão da Leonor.

“Querida Sofia,
Não sei como agradecer-lhe. O coração do meu filho bate graças à vossa coragem. Ele chama-se Rafael e tem quatro anos. Prometo cuidar dele por nós duas.”

Li aquela carta vezes sem conta. Chorei tudo o que não tinha chorado antes. Pela primeira vez desde aquele dia no hospital, senti um fio ténue de esperança.

O Miguel sugeriu irmos até à praia da Adraga, onde costumávamos passear com a Leonor ao domingo. Sentámo-nos na areia fria, de mãos dadas.

— Achas que algum dia isto vai deixar de doer? — perguntei-lhe.

Ele olhou para mim com ternura:

— Não sei… Mas talvez aprendamos a viver com a saudade.

Os meses passaram devagar. Comecei a fazer voluntariado na ala pediátrica do hospital. Conheci outras mães como eu — mães partidas por dentro mas cheias de amor para dar.

Um dia, vi uma menina loira a correr pelo corredor com um urso de peluche igual ao da Leonor. Sorri-lhe e ela sorriu de volta. Senti que a Leonor estava ali comigo, em cada gargalhada infantil, em cada raio de sol que entrava pela janela.

Hoje olho para trás e percebo que sobrevivi ao impensável. Que fui capaz de transformar dor em esperança para outras famílias. Que amar é também saber deixar partir.

Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem dentro da nossa dor? E será possível encontrar luz mesmo nos dias mais escuros?