Entre a Culpa e o Amor: O Preço das Escolhas

— Vais mesmo sair agora? — perguntei, a voz embargada, enquanto António vestia o casaco à pressa, os olhos evitando os meus.

Ele não respondeu de imediato. O silêncio entre nós era tão pesado que quase me sufocava. Lá fora, a chuva batia nos vidros do nosso pequeno apartamento em Almada, como se quisesse lavar os pecados que ali se acumulavam há anos.

— Preciso de ir, Sofia. A Leonor ligou. Diz que está a sentir-se mal outra vez — murmurou ele, finalmente, com um suspiro cansado.

A Leonor. A mulher dele. Aquela que, durante anos, foi apenas um nome sussurrado entre lençóis e promessas de um futuro que nunca parecia chegar. Quando nos conhecemos, António era casado há quase dez anos. Tinha dois filhos pequenos, o Diogo e a Matilde, e uma vida aparentemente estável. Eu era jovem, cheia de sonhos e ingenuidade, e nunca pensei que me apaixonaria por um homem comprometido.

No início, tudo parecia um romance proibido, excitante. António dizia-me que o casamento dele já estava morto há muito tempo, que só ficava por causa dos filhos. Eu acreditava. Queria acreditar. Mas tudo mudou no dia em que Leonor descobriu que estava grávida de gémeos.

Lembro-me do dia em que ele me contou:

— Sofia, ela está grávida… de gémeos. — Os olhos dele estavam vermelhos, as mãos tremiam.

Senti o chão fugir-me dos pés. O nosso mundo secreto desmoronava-se. António ficou ainda mais ausente, dividido entre a culpa e o dever. Eu esperava por ele todas as noites, olhando para o telemóvel à espera de uma mensagem que muitas vezes não chegava.

Os meses passaram e eu fui-me tornando uma sombra da mulher que era. Os meus pais começaram a desconfiar do meu estado de espírito. A minha mãe, Dona Teresa, uma mulher tradicional do Porto, confrontou-me numa tarde chuvosa:

— Sofia, tu andas diferente. Não te vejo sorrir há meses. O que se passa contigo?

Chorei nos braços dela como uma criança. Queria contar-lhe tudo, mas sabia que ela nunca aceitaria aquela relação. Cresci a ouvir que família era sagrada e que nada justificava destruir um lar.

Quando os gémeos nasceram — o Tomás e a Beatriz — António afastou-se ainda mais. Eu sentia-me cada vez mais sozinha, mas não conseguia largá-lo. Era como se estivesse presa numa teia de sentimentos contraditórios: amor, culpa, raiva e esperança.

Um dia, depois de uma discussão acesa ao telefone, decidi ir até à casa dele em Setúbal. Queria respostas. Queria saber se algum dia teria coragem de escolher-me.

— António! — bati à porta com força, ignorando os olhares curiosos dos vizinhos.

Ele abriu a porta com ar cansado. Lá dentro ouviam-se risos de crianças e o cheiro a sopa quente pairava no ar.

— O que estás aqui a fazer? — perguntou em voz baixa.

— Preciso de saber se algum dia vais escolher-me ou se vou continuar a ser apenas “a outra” — disse-lhe, as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

Ele olhou para mim como quem vê um fantasma.

— Não sei… Não sei se consigo deixar os meus filhos. Eles precisam de mim.

Voltei para casa destroçada. Passei dias sem comer, sem sair da cama. Os meus amigos afastaram-se; ninguém queria ouvir falar dos meus dramas amorosos intermináveis.

Foi então que recebi uma mensagem inesperada da Leonor:

“Sofia, precisamos de conversar. Encontra-me amanhã às 18h no café da praça.”

O coração disparou-me no peito. Hesitei em ir, mas sabia que não podia continuar a fugir daquela mulher cuja vida eu tinha ajudado a destruir.

No café, Leonor estava sentada junto à janela. Tinha olheiras fundas e um ar resignado.

— Senta-te — disse ela sem rodeios.

Sentei-me em silêncio.

— Sei tudo sobre vocês há muito tempo — começou ela. — No início odiei-te. Quis destruir-te. Mas agora só quero paz para mim e para os meus filhos.

Fiquei sem palavras.

— O António não vai deixar-nos — continuou ela. — Ele é fraco demais para tomar decisões difíceis. Se queres sofrer menos, afasta-te enquanto ainda podes.

Saí dali com um nó na garganta e uma raiva surda dentro de mim. Porque é que tinha de ser eu a sacrificar tudo? Porque é que o amor tinha de doer tanto?

Durante meses tentei afastar-me do António. Conheci outros homens, tentei reconstruir a minha vida, mas nenhum deles era ele. Até ao dia em que ele apareceu à minha porta com uma mala na mão e lágrimas nos olhos.

— Não aguento mais viver assim — disse ele. — Deixei a Leonor. Quero ficar contigo.

O início foi difícil. Os filhos dele recusavam-se a falar comigo; os meus pais cortaram relações durante meses; os amigos desapareceram quase todos. Mas finalmente tínhamos aquilo por que tanto lutámos: uma vida juntos.

Os anos passaram depressa demais. Tivemos uma filha, a Inês, que trouxe alguma luz aos dias cinzentos da nossa relação marcada por ressentimentos e culpas mal resolvidas.

Mas o tempo não perdoa ninguém. António envelheceu rápido; perdeu o emprego aos 58 anos e nunca mais foi o mesmo homem apaixonado e decidido por quem me apaixonei. Passava os dias sentado à janela, olhando para o vazio.

Uma noite encontrei-o a chorar baixinho no sofá.

— Sinto falta deles… dos meus filhos… da Leonor — confessou-me com voz embargada.

Senti uma pontada de ciúme misturada com pena. Sabia que ele nunca seria completamente meu; parte dele tinha ficado presa naquela família destruída pelo nosso amor egoísta.

A nossa filha cresceu num ambiente tenso, sempre a tentar agradar ao pai triste e à mãe frustrada. Quando fez 18 anos decidiu ir estudar para Lisboa e raramente nos liga agora.

Hoje olho para António — velho, cansado e arrependido — e pergunto-me se valeu a pena tudo isto. Se algum dia poderemos realmente fugir das consequências das nossas escolhas ou se estamos condenados a viver com elas até ao fim dos nossos dias.

E vocês? Acham que o verdadeiro amor justifica tudo? Ou há linhas que nunca deviam ser cruzadas?