“Agora não, Inês, os adultos estão a conversar”: A minha vida à sombra da própria família

“Agora não, Inês, os adultos estão a conversar.” Lembro-me destas palavras como se fossem um eco constante na minha cabeça, uma melodia amarga que me acompanhou desde a infância. Tinha sete anos quando ouvi isto pela primeira vez, dita pela minha mãe, Maria do Carmo, enquanto eu tentava mostrar-lhe um desenho que tinha feito na escola. O meu pai, António, olhou-me de relance, mas logo voltou a atenção para o copo de vinho e para a conversa animada com o meu tio Jorge. Senti-me pequena, invisível, como se o mundo dos adultos fosse um palco onde eu nunca teria direito a entrar.

Cresci numa casa antiga em Coimbra, com paredes grossas e janelas altas que deixavam entrar pouca luz. O cheiro a café e a roupa lavada misturava-se com o som da televisão sempre ligada na sala. A minha irmã mais velha, Marta, era a estrela da família: boa aluna, bonita, sempre com resposta pronta. Eu era a sombra. “A Inês é tão caladinha”, diziam as tias nos almoços de domingo. “Tens de ser mais como a tua irmã”, repetia o meu pai, sem perceber que cada palavra era uma pedra no muro que me separava deles.

Aos dez anos, tornei-me a mediadora dos conflitos familiares. Quando Marta discutia com os pais por causa das notas ou das saídas à noite, era eu quem levava recados de um lado para o outro. “Vai dizer à tua irmã que o jantar está pronto.” “Inês, pergunta ao pai se já se acalmou.” Nunca ninguém me perguntava como eu estava. Lembro-me de noites em que chorava baixinho no quarto, abraçada ao urso de peluche que já tinha perdido um olho. Perguntava-me se algum dia alguém repararia em mim.

O tempo passou e aprendi a ser útil. Era eu quem ajudava a avó Rosa a pôr a mesa, quem fazia companhia ao avô Manuel quando ele ficava sozinho no jardim. Os adultos elogiavam-me pela discrição e pela responsabilidade, mas nunca pela alegria ou criatividade. Senti que só tinha valor quando estava em silêncio ou quando resolvia problemas dos outros.

A adolescência trouxe novos desafios. Marta foi para a universidade em Lisboa e eu fiquei sozinha com os meus pais. O silêncio tornou-se ainda mais pesado. O meu pai perdeu o emprego na fábrica e começou a passar mais tempo em casa, irritado e distante. A minha mãe trabalhava horas extra no hospital e chegava exausta. Eu fazia o jantar, limpava a casa e estudava à noite. Um dia, tentei falar sobre os meus sonhos – queria estudar Belas-Artes no Porto – mas o meu pai interrompeu-me: “Isso não dá futuro nenhum, Inês. Tens de pensar em algo sério.” Senti o coração apertar-se no peito.

Na escola, também era invisível. Os professores mal sabiam o meu nome; os colegas viam-me como “a irmã da Marta” ou simplesmente ignoravam-me. Havia dias em que desejava desaparecer por completo. Só no caderno de desenhos encontrava algum consolo: ali podia ser quem quisesse, sem medo de julgamentos.

Aos dezassete anos, Marta voltou para casa depois de uma desilusão amorosa. Trouxe consigo um turbilhão de emoções e discussões. Os meus pais voltaram a centrar-se nela: “Coitadinha da Marta, está tão em baixo.” Eu continuava a ser o apoio silencioso – fazia chá para todos, arrumava as lágrimas espalhadas pela casa, recolhia os cacos dos pratos partidos nas discussões. Uma noite, ouvi Marta dizer à minha mãe: “A Inês é tão estranha… nunca reclama de nada.” Doeu ouvir aquilo. Não era força; era medo de não ser amada.

O ponto de rutura chegou numa tarde chuvosa de novembro. Estávamos todos sentados à mesa quando tentei contar que tinha sido aceite numa exposição juvenil de arte em Aveiro. “Que bom”, disse a minha mãe sem levantar os olhos do telemóvel. O meu pai nem reagiu. Marta suspirou alto e começou a falar do ex-namorado. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim – uma vontade de gritar até as paredes caírem.

Levantei-me bruscamente e deixei cair o copo de água no chão. “Basta!”, gritei com uma voz que nem reconheci como minha. Todos olharam para mim como se eu tivesse enlouquecido. “Eu existo! Tenho sentimentos! Só queria que me ouvissem uma vez na vida!” As lágrimas corriam-me pelo rosto enquanto fugia para o quarto.

Fechei a porta e sentei-me no chão, ofegante. Pela primeira vez senti-me viva – mesmo que fosse pela dor. Naquela noite não jantei com eles. Ouvi sussurros do outro lado da porta: “A Inês está estranha… será que precisa de ajuda?” Era tarde demais para perguntas.

Nos dias seguintes, mantive distância. Passei mais tempo na biblioteca da escola e comecei a escrever num diário tudo o que sentia – raiva, tristeza, esperança. A professora de Educação Visual reparou em mim e incentivou-me a continuar a desenhar. Pela primeira vez alguém via quem eu era realmente.

A exposição em Aveiro foi um sucesso modesto, mas para mim foi uma vitória imensa. Vi pessoas pararem diante dos meus quadros e sorrirem; ouvi elogios sinceros de desconhecidos. Senti orgulho – algo raro na minha vida.

Quando voltei para casa com um diploma nas mãos, os meus pais estavam sentados no sofá à espera. O meu pai levantou-se devagar e disse: “Desculpa se nunca te demos atenção suficiente.” A minha mãe chorou baixinho e abraçou-me como nunca antes. Marta pediu desculpa por nunca ter reparado em mim.

Foi um momento agridoce – perdoei-os porque sabia que também eram prisioneiros das suas próprias dores e limitações. Mas prometi a mim mesma que nunca mais deixaria que me apagassem.

Hoje sou artista plástica em Coimbra e dou aulas a crianças tímidas como eu fui. Tento mostrar-lhes que todas as vozes merecem ser ouvidas – mesmo as mais baixas.

Às vezes pergunto-me: quantas Inês existem por aí, presas no silêncio das suas casas? E será que algum dia teremos coragem para gritar o nosso nome ao mundo?