Estranho na Minha Casa: Um Grito Silencioso nas Famílias Portuguesas
— Sai daqui, Miguel! — gritei, com a voz embargada, sentindo o peito apertado como se faltasse ar. O eco das minhas palavras percorreu a sala, misturando-se com o cheiro a café frio e a humidade entranhada nas paredes da casa dos meus pais, agora minha. Miguel olhou-me como se eu fosse uma estranha, os olhos arregalados, as mãos trémulas segurando a chave que nunca mais lhe pertenceria.
Nunca pensei que chegaria a este ponto. Sempre fomos só nós dois, desde que a mãe morreu e o pai se foi embora para o Algarve com aquela mulher nova. Crescemos juntos nesta casa em Vila Nova de Gaia, entre discussões por causa do comando da televisão e tardes de verão no quintal, a apanhar amoras e a sonhar com uma vida melhor. Mas agora, tudo o que restava era silêncio e mágoa.
A verdade é que tudo começou quando o pai morreu há dois anos. A casa ficou para mim, porque era eu quem cuidava dele nos últimos meses, quem lhe dava banho e lhe limpava as feridas. Miguel vinha de vez em quando, sempre com pressa, sempre com desculpas. “O trabalho no Porto não me deixa tempo para nada”, dizia ele. Mas quando chegou a hora da partilha dos bens, Miguel apareceu com advogados e exigiu metade de tudo.
— Mariana, não percebes? Eu também sou filho! — atirou ele, numa dessas discussões intermináveis.
— Foste filho quando te dava jeito! — respondi-lhe, sentindo o rancor crescer dentro de mim como uma erva daninha.
Os meses seguintes foram um inferno. Miguel mudou-se para cá sem avisar, trazendo malas e uma namorada nova, a Sílvia, que nunca me olhou nos olhos. De repente, a minha casa deixou de ser minha. O cheiro do perfume dela invadiu o corredor, as roupas dele amontoavam-se na casa de banho e até o meu gato começou a esconder-se debaixo da cama.
Tentei falar com ele, tentei explicar que precisava do meu espaço, que aquela casa era o meu refúgio depois de anos a cuidar dos outros. Mas Miguel ria-se na minha cara.
— Achas que isto é só teu? Acorda para a vida, Mariana! — gritava ele, batendo com a porta do quarto.
As noites tornaram-se longas e frias. Ouvi-os discutir baixinho, ouvi Sílvia dizer-lhe que eu era “maluca” e que devíamos vender tudo e dividir o dinheiro. Comecei a sentir-me uma intrusa na minha própria vida. Ia trabalhar para o hospital todos os dias com olheiras fundas e um nó no estômago. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria, fingindo que sim.
Até que um dia cheguei a casa e encontrei as fotografias da família no lixo. As molduras partidas, os rostos dos meus pais riscados com caneta preta. Senti as pernas fraquejarem.
— O que é isto? — perguntei, quase sem voz.
Miguel encolheu os ombros.
— Estavam a ocupar espaço. Ninguém quer saber dessas coisas velhas.
Foi nesse momento que percebi: ele já não era o meu irmão. Era um estranho na minha casa, alguém capaz de apagar as nossas memórias só para me magoar.
Falei com uma advogada. Ela disse-me que tinha direito a pedir que ele saísse, mas avisou-me: “Prepare-se para ser vista como a vilã da família”. Não queria acreditar que tudo se resumia a isto — ou eu ou ele.
Naquela noite não dormi. Lembrei-me da mãe a fazer arroz doce ao domingo, do pai a ensinar-nos a andar de bicicleta no parque da Lavandeira. Lembrei-me das promessas que fizemos um ao outro quando éramos crianças: nunca nos abandonaríamos.
Mas as promessas quebram-se quando o amor se transforma em rancor.
Na manhã seguinte, chamei-o à sala.
— Miguel, tens de sair. Esta casa é minha agora. Preciso do meu espaço para viver em paz.
Ele riu-se.
— Vais mesmo fazer isto? Vais pôr o teu próprio irmão na rua?
Senti as lágrimas queimarem-me os olhos.
— Não me deixaste escolha.
Ele atirou as chaves para cima da mesa e saiu sem olhar para trás. Sílvia foi atrás dele, lançando-me um olhar de desprezo.
Fiquei ali parada durante minutos, talvez horas. O silêncio era ensurdecedor. Sentei-me no sofá e chorei como nunca tinha chorado antes.
Os dias seguintes foram estranhos. A casa parecia maior, mas também mais fria. Os vizinhos começaram a cochichar quando me viam na rua. A tia Rosa ligou-me aos gritos:
— Como foste capaz? O teu irmão sempre te ajudou!
Quis responder-lhe que não era verdade, que eu é que sempre estive lá por ele. Mas calei-me. Aprendi cedo que nas famílias portuguesas quem fala mais alto é quem tem razão — ou pelo menos é assim que parece.
No hospital, os colegas começaram a evitar-me. Uma delas disse-me:
— Ouvi dizer que expulsaste o teu irmão de casa… Isso faz-se?
Senti vergonha e raiva ao mesmo tempo. Ninguém sabia o que eu tinha passado. Ninguém sabia das noites em claro, do medo constante de perder tudo aquilo por que lutei.
Comecei a duvidar de mim mesma. Será que exagerei? Será que devia ter aguentado mais um pouco? Mas depois lembrava-me das fotografias no lixo e do cheiro estranho no corredor e sabia que não podia voltar atrás.
O tempo passou devagar. Aos poucos fui recuperando o meu espaço: pintei as paredes da sala de amarelo claro, comprei cortinas novas e plantei flores no quintal. O gato voltou a dormir aos meus pés. Mas havia um vazio difícil de preencher — uma ferida aberta entre mim e o passado.
No Natal desse ano sentei-me sozinha à mesa posta para dois. Olhei para o lugar vazio à minha frente e perguntei-me se algum dia conseguiria perdoar o Miguel — ou perdoar-me a mim própria pelo que fiz.
Às vezes penso em ligar-lhe, perguntar-lhe se está bem, se encontrou outro lugar para viver ou se ainda me odeia tanto quanto naquele dia em que saiu pela porta sem olhar para trás. Mas nunca tenho coragem suficiente.
A vida segue em frente, dizem todos. Mas será mesmo assim? Ou será que há feridas familiares que nunca saram?
E vocês? Já sentiram que precisaram escolher entre o vosso bem-estar e agradar à família? Até onde iriam para proteger aquilo que é vosso?