O Dia em Que Tudo Mudou: Um Drama Lisboeta
— Dona Inês? Aqui é do Hospital de Santa Maria. O seu marido, Miguel, sofreu um acidente grave. Precisa vir imediatamente.
O telefone quase caiu-me das mãos. O chão fugiu-me dos pés. O Miguel? O meu Miguel? A voz da enfermeira ecoava na minha cabeça enquanto eu tentava vestir-me à pressa, com as mãos a tremer tanto que mal conseguia abotoar a camisa. O pequeno-almoço ficou esquecido na mesa, o café arrefeceu, e o relógio parecia zombar de mim com cada segundo que passava.
No táxi, as ruas de Lisboa passavam por mim como um filme a preto e branco. Lembrei-me do sorriso do Miguel naquela manhã, do beijo apressado na testa antes de sair para o trabalho. “Não te esqueças do jantar com os meus pais logo à noite”, tinha dito. Como se tudo fosse normal. Como se a vida não pudesse mudar num instante.
Quando cheguei ao hospital, fui recebida por uma médica de olhar cansado. — Ele está estável, mas precisa de repouso. Teve sorte — disse ela, mas o tom não me tranquilizou. Entrei no quarto e vi o Miguel ligado a máquinas, pálido como nunca o tinha visto. Sentei-me ao lado dele e segurei-lhe a mão. — Estou aqui, amor — sussurrei, mas ele não respondeu.
Foi então que reparei numa mulher sentada no corredor, de olhos vermelhos e cabelo desgrenhado. Parecia tão perdida quanto eu. Quando os nossos olhares se cruzaram, ela levantou-se e aproximou-se.
— Desculpe… É a Inês? — perguntou, hesitante.
— Sim… Sou eu. Quem é?
Ela hesitou antes de responder:
— Eu sou a Sofia… trabalho com o Miguel.
Aquela pausa, aquele olhar estranho… Senti um frio na espinha. — Está tudo bem? — perguntei, tentando soar calma.
Ela olhou para mim como quem carrega um segredo demasiado pesado para ser dito em voz alta. — Acho que precisamos de conversar — murmurou.
Sentámo-nos num banco do corredor. O cheiro a desinfetante misturava-se com o medo no ar.
— O Miguel… ele… — Sofia começou a chorar. — Ele não é quem você pensa que é.
O mundo parou. — Como assim?
— Eu… eu sou a namorada dele há dois anos. Não sabia que ele era casado até hoje de manhã, quando ligaram do hospital para mim também.
Senti o sangue fugir-me do rosto. As palavras dela eram facas afiadas a cortar tudo o que eu pensava saber sobre o homem com quem partilhava a vida há mais de dez anos.
— Está a brincar comigo? Isto é algum tipo de piada? — perguntei, mas já sabia que não era.
Sofia abanou a cabeça, lágrimas a correr-lhe pelo rosto. — Eu juro que não sabia… Ele dizia-me que era divorciado, que vivia sozinho…
Levantei-me de rompante e voltei para o quarto do Miguel. Olhei para ele, tão frágil ali naquela cama, e senti raiva misturada com pena. Como é possível alguém esconder tanto durante tanto tempo?
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A família do Miguel começou a chegar ao hospital: a mãe dele, Dona Teresa, sempre tão altiva; o irmão mais novo, Rui, que nunca gostou muito de mim; e até o pai, que raramente aparecia nas reuniões de família.
No corredor do hospital, as conversas tornaram-se sussurros e olhares de lado. Dona Teresa puxou-me para um canto:
— Inês, precisamos de falar sobre o futuro do Miguel. Ele vai precisar de cuidados quando sair daqui.
— E eu? Quem cuida de mim? — respondi, sem conseguir conter as lágrimas.
Ela olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta. — Tens de ser forte agora. O Miguel precisa de ti.
Mas eu já não sabia se queria ser forte por ele. As noites passaram-se em claro, sentada à janela do quarto vazio do nosso apartamento em Benfica, olhando para as luzes da cidade e perguntando-me onde tinha falhado.
Uma noite, Rui bateu-me à porta.
— Posso entrar?
Assenti em silêncio. Ele sentou-se à minha frente e ficou uns segundos sem dizer nada.
— Sabes… O Miguel sempre foi assim. Sempre teve segredos. Eu tentei avisar-te no início…
— Porque nunca me disseste nada? — perguntei, sentindo uma raiva surda crescer dentro de mim.
Ele encolheu os ombros. — Ninguém quer ser o mensageiro das más notícias numa família como a nossa.
A verdade é que todos sabiam menos eu. Senti-me traída não só pelo Miguel, mas por todos à minha volta.
Quando finalmente o Miguel acordou e pôde falar comigo, sentei-me ao lado dele e olhei-o nos olhos pela primeira vez sem amor, apenas com uma dor surda no peito.
— Porque me fizeste isto? — perguntei baixinho.
Ele desviou o olhar. — Não sei… Tinha medo de te perder. E depois já era tarde demais para contar a verdade.
— E agora? Achas que ainda há alguma coisa para salvar?
Ele chorou como nunca o tinha visto chorar antes. Mas eu já não conseguia chorar por ele.
Os dias passaram e as visitas ao hospital tornaram-se cada vez mais curtas. A Sofia deixou de aparecer depois de uma última conversa em que ambas chorámos tudo o que havia para chorar.
Quando finalmente levei o Miguel para casa, percebi que nada voltaria a ser igual. A confiança era uma ponte partida sobre um abismo impossível de atravessar.
A minha mãe veio ajudar-me nos primeiros dias. Sentámo-nos na cozinha enquanto ela preparava chá e eu olhava para as mãos vazias sobre a mesa.
— Filha, às vezes é preciso perder tudo para percebermos quem realmente somos — disse ela com aquela sabedoria simples das mães portuguesas.
Olhei para ela e perguntei:
— Mas como é que se volta a confiar depois disto tudo?
Ela sorriu tristemente:
— Um dia de cada vez, Inês. Um dia de cada vez.
Agora escrevo estas palavras sentada no mesmo banco do hospital onde tudo começou. Pergunto-me: quantas vidas cabem dentro de uma só mentira? E será possível reconstruir um coração partido quando até as certezas mais simples nos são roubadas?