A noite em que perdi tudo: entre a traição e o recomeço

— Vais mesmo sair agora, Rui? Com esta chuva toda? — perguntei, a voz a tremer entre o medo e a raiva. Ele nem olhou para mim. Pegou nas chaves do carro e murmurou:

— Preciso de espaço, Mariana. Não consigo respirar aqui.

O trovão ribombou lá fora, como se o céu também protestasse. Fiquei parada no corredor, com os miúdos já deitados, a ouvir o som da porta a fechar-se com força. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Senti-me pequena, esmagada pelo peso da solidão e da dúvida. O Rui não era assim. Ou talvez fosse, e eu nunca quis ver.

A chuva batia nas janelas, e eu sentei-me no sofá, abraçando as pernas. O telemóvel ficou pousado na mesa, mudo. Não havia mensagens, nem chamadas. Só o eco das palavras dele: “Preciso de espaço”.

Lembrei-me do início, quando tudo era fácil. Conheci o Rui na faculdade, em Coimbra. Ele fazia piadas parvas para me fazer rir nos dias maus. Prometeu-me o mundo quando nos casámos na igreja da aldeia dele, com os nossos pais a chorarem de emoção. E agora? Agora éramos dois estranhos na mesma casa.

O relógio marcava quase meia-noite quando ouvi passos leves no corredor. Era a Matilde, a nossa filha mais velha.

— Mãe? O pai foi-se embora?

Engoli em seco. Não queria mentir-lhe, mas também não podia dizer-lhe a verdade toda.

— Foi dar uma volta, querida. Vai voltar.

Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e tristes que me partiram o coração.

— Vocês vão-se divorciar?

Fiquei sem palavras. Como é que uma criança de oito anos sabia sequer o que era isso? Abracei-a com força.

— Não sei, filha. Mas aconteça o que acontecer, eu estou aqui contigo.

Ela adormeceu no meu colo, mas eu fiquei acordada a noite toda. A cabeça cheia de perguntas sem resposta: Onde estava o Rui? Com quem? O que é que eu fiz de errado?

Na manhã seguinte, a minha mãe ligou cedo.

— Mariana, estás bem? Pareces cansada.

Quis dizer-lhe tudo, mas calei-me. A minha mãe sempre achou que o Rui era um bom partido, um homem trabalhador. Não queria desiludi-la.

— Está tudo bem, mãe. Só não dormi muito.

— Olha que se precisares de ajuda com os miúdos… — insistiu ela.

Agradeci e desliguei. Senti-me ainda mais sozinha. O Rui não voltou nessa noite. Nem na seguinte. No terceiro dia, liguei-lhe finalmente.

— Rui, onde estás?

Ele suspirou do outro lado da linha.

— Estou em casa da minha mãe. Preciso de pensar.

— Pensar no quê? Nos teus filhos? Em mim?

Houve um silêncio longo antes de ele responder:

— Não sei se isto ainda faz sentido, Mariana.

Senti um nó na garganta. O medo transformou-se em raiva.

— Então diz-me logo! Não me deixes aqui à espera!

Ele desligou sem responder. Chorei até não ter mais lágrimas.

Os dias seguintes foram um borrão de rotinas: levar as crianças à escola, fazer o jantar, fingir normalidade. Mas por dentro estava a desmoronar-me. Comecei a reparar em pequenas coisas: mensagens apagadas no telemóvel do Rui, noites em que ele chegava tarde sem explicação. A dúvida tornou-se certeza — havia outra pessoa.

Confrontei-o quando finalmente apareceu para ver as crianças ao fim de uma semana.

— Rui, há outra mulher?

Ele desviou o olhar.

— Mariana… Eu não queria magoar-te.

— Mas magoaste! — gritei-lhe, incapaz de me controlar. — Traíste-me! Traíste a nossa família!

As crianças ouviram a discussão e começaram a chorar. Senti-me miserável por lhes estar a dar aquele exemplo.

Depois disso, tudo mudou. O Rui começou a passar cada vez menos tempo connosco. A minha sogra ligava-me todos os dias, ora para me culpar pelo fim do casamento — “Se fosses mais compreensiva…” — ora para me pedir que deixasse o Rui ver os filhos quando quisesse. A minha mãe dizia-me para ser forte, mas eu só queria desaparecer.

No trabalho também não estava melhor. O meu chefe começou a notar que eu chegava atrasada e distraída.

— Mariana, tens de te concentrar ou vamos ter problemas — avisou ele num tom frio.

Senti-me encurralada por todos os lados: em casa, no trabalho, na família. Comecei a ter ataques de ansiedade à noite. Não conseguia dormir nem comer direito.

Foi a Matilde quem me acordou para a realidade numa dessas noites em claro.

— Mãe, tu vais ficar bem?

Olhei para ela e percebi que tinha de ser forte por ela e pelo irmão mais novo, o Tiago. Eles precisavam de mim inteira, não partida aos bocados.

Procurei ajuda numa psicóloga do centro de saúde. Falei-lhe da traição do Rui, da solidão, do medo de não conseguir criar os filhos sozinha.

— Mariana, você não está sozinha — disse ela com uma calma reconfortante. — Tem direito à sua dor, mas também tem direito à felicidade.

Comecei a reconstruir-me aos poucos. Aceitei o apoio da minha mãe para ficar com as crianças quando precisava de respirar. Voltei a correr ao fim da tarde para libertar o stress. Fiz novas amigas na escola dos miúdos — outras mães solteiras que sabiam bem o que era recomeçar do zero.

O Rui tentou voltar algumas vezes, mas já não era igual. Eu já não era igual. Um dia sentei-me com ele na sala e disse-lhe:

— Não posso continuar assim, Rui. Preciso de paz para mim e para os nossos filhos.

Ele chorou pela primeira vez desde que tudo começou.

— Desculpa, Mariana. Fui um cobarde.

Abracei-o pela última vez e deixei-o ir.

Os meses passaram devagarinho até que um dia percebi que já não chorava ao acordar sozinha na cama grande demais para mim. Os miúdos riam-se mais vezes e eu também comecei a rir outra vez.

Hoje olho para trás e vejo aquela noite de tempestade como um ponto de viragem na minha vida. Perdi o Rui, perdi uma parte de mim — mas ganhei algo maior: descobri que sou capaz de sobreviver ao pior e ainda assim encontrar alegria nas pequenas coisas.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao medo de recomeçar? Quantas acreditam que não têm força até serem obrigadas a encontrá-la? E vocês — já sentiram que perderam tudo só para perceberem que afinal ganharam muito mais?