“Amanhã fazem as malas e vão-se embora” – A história de uma mãe portuguesa que escolheu a si mesma
“Amanhã fazem as malas e vão-se embora.” As palavras saíram-me da boca antes sequer de as conseguir pensar. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocava. O João, o meu filho, olhou para mim com os olhos arregalados, como se eu tivesse acabado de lhe dar uma bofetada. A Ana, a minha nora, ficou estática, com a chávena de chá a meio caminho da boca. O relógio da sala marcava dez e meia da noite, mas o tempo parecia ter parado.
Durante meses, vivi num limbo entre o amor de mãe e a exaustão de mulher. Quando o João e a Ana perderam o emprego em Lisboa e voltaram para a minha casa em Setúbal, pensei que seria temporário. “É só até arranjarmos trabalho, mãe”, prometeram. Mas os meses passaram, as entrevistas falharam, e a rotina instalou-se como uma mancha teimosa no tapete da sala.
No início, era bom ter companhia. O João sempre foi o meu menino, mesmo depois de casar. A Ana era educada, prestável, mas havia nela uma tristeza que nunca consegui decifrar. A casa encheu-se de vozes, risos tímidos e cheiros de comida diferente. Mas rapidamente vieram os pequenos atritos: a loiça por lavar, as toalhas molhadas no chão da casa de banho, o volume da televisão demasiado alto à noite.
Lembro-me de uma manhã em particular. Estava a preparar o pequeno-almoço quando ouvi o João e a Ana a discutir no quarto. “Não posso continuar assim!”, gritava ela. “A tua mãe controla tudo!” Senti-me invisível e ao mesmo tempo culpada. Será que estava a ser demasiado rígida? Ou apenas tentava manter alguma ordem na minha própria casa?
As discussões tornaram-se frequentes. O João começou a sair mais vezes, dizia que ia procurar trabalho mas voltava tarde, cheirando a cerveja barata. A Ana fechava-se no quarto, passava horas ao telefone com alguém – talvez a mãe dela, talvez uma amiga. Eu tentava manter-me ocupada: limpava, cozinhava, arranjava o jardim. Mas sentia-me cada vez mais sozinha dentro da minha própria casa.
Uma noite, depois do jantar, tentei conversar com eles. “Filho, Ana… precisamos de falar sobre o futuro.” O João revirou os olhos. “Outra vez, mãe? Já sabemos que estás farta de nós.” A Ana nem sequer levantou os olhos do telemóvel. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim – não era só cansaço, era frustração por não ser ouvida nem respeitada.
A gota de água foi naquela noite em que encontrei o João a vasculhar na minha carteira à procura de dinheiro. “Preciso só de vinte euros para o passe”, disse ele sem vergonha. Senti-me traída. Não era pelo dinheiro – era pela falta de confiança, pela falta de respeito.
Foi então que explodi: “Amanhã fazem as malas e vão-se embora!”
O João levantou-se num salto. “Estás a expulsar-nos? Depois de tudo?”
“Depois de tudo”, repeti eu, com lágrimas nos olhos. “Preciso da minha vida de volta.”
A Ana começou a chorar baixinho. “Não temos para onde ir…”
“Vão encontrar”, disse eu, tentando manter-me firme. “Talvez assim percebam que têm de lutar por vocês próprios.”
Nessa noite não dormi. Ouvi-os arrumar as coisas no quarto, ouvi sussurros e choros abafados. Senti-me um monstro e ao mesmo tempo… aliviada.
Na manhã seguinte, o João saiu sem se despedir. A Ana veio ter comigo à cozinha com os olhos inchados.
“Obrigada por tudo”, murmurou ela.
“Desculpa”, respondi eu, sem saber bem porquê – se por os ter acolhido ou por os estar a mandar embora.
Quando finalmente ficaram sozinhos na rua com as malas, fechei a porta devagarinho e encostei-me à madeira fria. Chorei como há muito não chorava – um choro fundo, antigo, cheio de mágoa e culpa.
Nos dias seguintes, a casa parecia enorme e vazia. O silêncio era ensurdecedor. Perguntei-me mil vezes se tinha feito o certo. Recebi mensagens do João: “Nunca pensei isto de ti.” Da Ana: “Vamos tentar ficar bem.”
A vizinha do lado comentou: “Fez bem, D. Teresa! Eles têm idade para se desenrascar.” Mas será que fiz mesmo bem? Ou fui egoísta?
O tempo foi passando e fui reaprendendo a viver sozinha. Voltei às caminhadas na praia ao fim da tarde, comecei a ir ao cinema com amigas antigas. Aos poucos, o peso no peito foi diminuindo.
Passaram-se três meses até receber um telefonema do João: “Mãe… arranjámos um quarto em Almada. A Ana já está a trabalhar numa loja.” Havia orgulho na voz dele – e talvez um pouco de saudade.
“Fico feliz por vocês”, respondi eu, tentando não chorar.
Hoje olho para trás e percebo que aquela noite mudou tudo – para eles e para mim. Não deixei de ser mãe por me escolher a mim mesma. Talvez tenha sido precisamente por isso que consegui ser mãe outra vez.
Será que há momentos em que temos mesmo de escolher entre nós e os nossos filhos? Ou será que amar também é saber dizer basta? Gostava de saber o que fariam vocês no meu lugar.