Entre Dois Mundos: O Ano em Que Tudo Mudou

— Mariana, não voltes tarde. E lembra-te do que te disse sobre aquele rapaz! — A voz da minha mãe ecoava pela casa, carregada de uma preocupação que já roçava o desespero. Eu, com a mão na maçaneta, hesitei. O cheiro do jantar ainda pairava no ar, misturado com o aroma do detergente barato que ela usava para limpar a cozinha. — Mãe, eu já tenho 20 anos. Não podes controlar tudo na minha vida! — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.

Ela aproximou-se, olhos marejados, e baixou o tom: — Mariana, tu não percebes… O mundo lá fora não é como tu pensas. O Rui… ele não é para ti. Não é do nosso meio. — O nosso meio. Sempre aquela barreira invisível entre o que era aceitável e o que não era. Rui era de uma família cigana, e isso bastava para ser visto como um perigo, um erro, uma ameaça à reputação dos Silva.

Saí de casa com o coração aos pulos, sentindo-me dividida entre dois mundos. O meu telemóvel vibrava com mensagens do Rui: “Estou à tua espera no jardim.” Corri pelas ruas estreitas de Vila Nova de Gaia, tentando ignorar os olhares dos vizinhos. Sabia que a minha mãe tinha razão em preocupar-se — aqui todos sabiam tudo sobre todos.

Quando cheguei ao jardim, Rui estava encostado ao banco, sorriso tímido, cabelo escuro caindo-lhe sobre os olhos. — Estás bem? — perguntou, pegando-me na mão. — Não sei… — confessei. — Sinto que estou a trair a minha família só por estar aqui contigo.

Ele suspirou, apertando-me a mão com força. — Mariana, eu amo-te. Mas não posso obrigar-te a escolher entre mim e eles.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Em casa, o ambiente tornou-se insuportável. A minha mãe começou a vigiar-me como se eu fosse uma criminosa. O meu pai, calado, limitava-se a olhar-me com desilusão sempre que eu entrava na sala. Até o meu irmão mais novo, Tiago, começou a evitar-me.

Na universidade, as coisas também não estavam melhores. Estudava Direito porque era o sonho dos meus pais, não o meu. As aulas eram um suplício; sentia-me uma impostora entre colegas que pareciam ter tudo planeado. A pressão aumentava a cada exame falhado, a cada chamada da orientadora: — Mariana, tens potencial, mas falta-te foco.

Numa noite de sexta-feira, depois de mais uma discussão acesa em casa — desta vez porque cheguei tarde do estudo (na verdade, tinha estado com o Rui) — tranquei-me no quarto e chorei até adormecer. Sonhei com uma vida diferente: eu e Rui numa casa pequena à beira-mar, longe dos olhares e das expectativas.

No dia seguinte, acordei com gritos vindos da cozinha. — Não admito que continues com esse rapaz! — gritava a minha mãe. — Vais acabar como a prima Carla: sozinha e desgraçada!

— Mãe! — gritei de volta. — Eu não sou a Carla! E o Rui não é nenhum criminoso!

Ela atirou um prato ao chão; os cacos espalharam-se como os pedaços da nossa relação. O meu pai levantou-se da mesa e saiu sem dizer palavra.

Durante semanas vivi num limbo: em casa era tratada como uma estranha; na universidade sentia-me perdida; com o Rui sentia-me viva mas culpada. Comecei a faltar às aulas, a fechar-me no quarto, a evitar todos.

Uma tarde, recebi uma mensagem do Tiago: “A mãe está mal.” Corri para casa e encontrei-a sentada no sofá, olhos vermelhos e mãos trémulas. Sentei-me ao lado dela em silêncio até ela falar:

— Mariana… Eu só quero proteger-te. O mundo é cruel para quem é diferente.

— Mas eu não quero viver com medo, mãe. Quero ser feliz à minha maneira.

Ela chorou nos meus braços como nunca antes tinha visto. Pela primeira vez percebi que o medo dela era amor distorcido pela tradição e pelo receio do julgamento alheio.

Decidi enfrentar tudo de uma vez: contei aos meus pais que ia mudar de curso para Psicologia — queria ajudar pessoas como nós, presas entre expectativas e desejos próprios. Disse-lhes também que não ia desistir do Rui só porque era mais fácil ceder.

O meu pai ficou semanas sem me dirigir a palavra; a minha mãe alternava entre lágrimas e silêncios pesados. Só Tiago me apoiou desde o início: — Tens coragem, mana. Eu nunca conseguiria.

Com o tempo, as coisas acalmaram. A minha mãe começou a perguntar pelo Rui; o meu pai aceitou jantar connosco um dia (embora tenha passado todo o tempo calado). Na universidade nova senti-me finalmente em casa; fiz amigos que me aceitavam como era.

Mas nada disto foi fácil ou rápido. Houve noites em que pensei desistir de tudo; dias em que odiei os meus pais por não me entenderem; momentos em que duvidei do amor do Rui por me ver tão perdida.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas Marianas existem por aí, presas entre dois mundos? Quantos sonhos se perdem por medo de dececionar quem amamos? Será possível sermos fiéis a nós próprios sem perdermos quem nos é mais querido?

E vocês? Já sentiram este conflito entre o coração e as raízes?