Entre o Amor e a Desconfiança: O Meu Casamento aos 57 Anos
— Mãe, não podes fazer isto! — gritou a Inês, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu segurava o convite do meu próprio casamento nas mãos trémulas. O papel parecia pesar toneladas. — Não vês que o António só quer o teu dinheiro? Que tipo de mãe és tu para não me ouvires?
Senti o coração apertar-se no peito. A sala estava mergulhada numa luz cinzenta de fim de tarde, e o cheiro do café frio misturava-se com o perfume doce das flores que o António me tinha trazido na véspera. Olhei para a minha filha, tão parecida comigo quando tinha a idade dela, e perguntei-me: será que estou mesmo cega pelo amor?
— Inês, filha, eu amo o António. Ele faz-me sentir viva outra vez. Depois do teu pai… — a minha voz falhou. Não conseguia dizer mais nada. O silêncio entre nós era pesado, quase insuportável.
Ela virou as costas, os ombros tensos. — O pai nunca te faria isto. Nunca te deixaria ser enganada.
O nome do Manuel, o meu falecido marido, pairou no ar como uma sombra. Foram trinta anos de casamento, com altos e baixos, mas sempre com respeito. Quando ele morreu, achei que nunca mais seria capaz de amar. Mas o António apareceu na minha vida como um raio de sol depois de uma tempestade.
Conhecemo-nos numa excursão ao Douro organizada pela Junta de Freguesia. Ele era divertido, atencioso, sabia ouvir-me. Começámos a sair para cafés, passeios à beira-mar em Matosinhos, jantares simples em casa dele. Aos poucos, fui-me apaixonando por aquele homem que me fazia rir das minhas próprias inseguranças.
Mas a Inês nunca gostou dele. Desde o início, desconfiou das suas intenções. Dizia que ele era demasiado simpático para ser verdadeiro, que fazia perguntas sobre as minhas contas bancárias e que estava sempre disponível demais.
— Mãe, ele não tem família? Nunca fala dos filhos? — insistia ela.
— Ele tem uma filha em Lisboa, mas estão afastados… — tentei justificar.
— Pois, claro. Sempre histórias mal contadas.
As discussões tornaram-se rotina. A Inês começou a aparecer em casa sem avisar, vasculhava papéis na minha secretária, perguntava-me quanto dinheiro tinha na conta. Senti-me invadida, como se fosse uma criança incapaz de tomar decisões.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, fechei-me no quarto e chorei até adormecer. Lembrei-me do tempo em que era eu quem ralhava com a Inês por ela chegar tarde a casa ou por confiar em amigos errados. Agora os papéis inverteram-se.
O António tentava acalmar-me.
— Maria do Céu, não ligues. A tua filha só está preocupada contigo. É normal… — dizia ele, passando-me a mão pelos cabelos.
Mas havia momentos em que eu própria duvidava. Porque é que ele nunca falava da sua vida antes de me conhecer? Porque é que evitava responder quando eu perguntava sobre o passado?
Certa tarde, enquanto arrumava a gaveta da cómoda dele — já tínhamos começado a juntar algumas coisas — encontrei uma carta antiga, dirigida a uma tal de Teresa. O António entrou no quarto nesse instante e viu-me com a carta na mão.
— O que estás a fazer? — perguntou ele, num tom seco que nunca lhe tinha ouvido.
— Quem é a Teresa? — perguntei eu, sentindo-me ridícula e traída ao mesmo tempo.
Ele tirou-me a carta das mãos com um gesto brusco.
— É uma história antiga. Não tem importância agora.
Mas tinha importância para mim. A dúvida instalou-se como uma erva daninha no meu peito.
No dia seguinte, fui ter com a minha irmã mais velha, a Rosa. Sempre foi o meu porto seguro.
— Céu, tens de pensar bem — disse ela, depois de ouvir tudo. — Eu sei que estás apaixonada, mas não podes ignorar os sinais. E se a Inês tiver razão?
Senti-me dividida entre duas lealdades: à minha filha e ao homem que me fazia sentir jovem outra vez.
Os dias seguintes foram um tormento. O António tentava mostrar-se compreensivo, mas percebia-lhe o nervosismo sempre que eu falava da Inês ou da carta. A Inês ligava-me todos os dias, às vezes só para perguntar se estava tudo bem; outras vezes para insistir que eu devia cancelar o casamento.
Uma noite, depois do jantar, ela apareceu em minha casa sem avisar. Trazia consigo um envelope castanho.
— Mãe… — disse ela baixinho — Eu contratei um detetive privado.
O chão fugiu-me dos pés. Sentei-me no sofá sem forças.
— O quê?
Ela abriu o envelope e tirou fotografias: o António à porta de um prédio degradado em Vila Nova de Gaia; o António num café com uma mulher desconhecida; o António a levantar dinheiro numa caixa multibanco.
— Ele tem dívidas enormes — disse ela — E aquela mulher é a Teresa. Ainda estão juntos! Ele está a usar-te!
Senti um nó na garganta tão apertado que quase não conseguia respirar. Olhei para as fotografias como se fossem provas de um crime hediondo cometido contra mim.
— Não pode ser… — murmurei.
A Inês abraçou-me com força. Pela primeira vez em meses senti-a como minha filha pequena outra vez.
Na manhã seguinte confrontei o António.
— Diz-me a verdade: quem é a Teresa? Tens dívidas? Estás comigo por interesse?
Ele ficou pálido como cal. Sentou-se à minha frente e baixou os olhos.
— Maria do Céu… Eu devia ter-te contado tudo desde o início. A Teresa é minha ex-mulher. Tivemos muitos problemas financeiros por causa do vício do jogo… Eu perdi tudo. Ela perdoou-me muita coisa mas não conseguimos continuar juntos. Quando te conheci estava sozinho e sem nada… Mas juro-te que nunca te quis enganar.
As lágrimas correram-lhe pelo rosto enrugado. Pela primeira vez vi-o vulnerável, despido de todas as defesas.
— Eu amo-te — disse ele — Mas percebo se não quiseres continuar comigo.
Fiquei ali sentada durante minutos que pareceram horas. O silêncio era absoluto; só se ouvia o tic-tac do relógio da sala.
No fim decidi cancelar o casamento. Não porque achasse que ele era um monstro ou um vigarista sem remédio, mas porque percebi que precisava de tempo para confiar novamente — nele e em mim própria.
A Inês chorou comigo nesse dia. Abraçámo-nos como há muito não fazíamos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez é tarde demais para amar? Ou será que há alturas em que devemos ouvir mais o coração ou mais a razão? E vocês… já passaram por algo assim?