Este Não É o Homem Que Casei: As Mágoas de Rui Estão a Destruir o Nosso Casamento

— Outra vez sopa de legumes, Inês? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de desdém. Senti o estômago apertar-se, como se cada palavra dele fosse uma pedra a cair-me em cima do peito. — Se calhar devias ouvir a minha mãe e aprender a fazer um cozido como deve ser.

A colher tremeu-me na mão. Olhei para os gémeos, Tomás e Leonor, que brincavam no tapete da sala, alheios à tensão que pairava no ar. Tentei respirar fundo, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Não era só sobre a sopa. Era sobre tudo o que se tinha acumulado nos últimos anos.

Quando conheci o Rui, ele era divertido, espontâneo, cheio de sonhos. Trabalhava como engenheiro civil e dizia-me que juntos íamos conquistar o mundo. Casámos numa tarde de setembro, com os sinos da igreja de Santa Maria a tocar e os nossos amigos a rir e a dançar até de madrugada. Lembro-me de olhar para ele nesse dia e pensar: “É este o homem com quem quero envelhecer.”

Mas depois vieram as dificuldades. O Rui perdeu o emprego durante a crise. Eu já estava grávida dos gémeos e ele passou meses fechado em casa, a enviar currículos e a receber recusas atrás de recusas. Começou a ficar mais calado, mais irritadiço. E foi nessa altura que Dona Graça, a minha sogra, começou a aparecer cada vez mais.

— O Rui precisa de força — dizia ela, enquanto me olhava de cima a baixo. — E tu tens de ser mulher para ele.

No início tentei compreender. Ela também tinha passado por dificuldades, perdera o marido cedo e criara o Rui sozinha. Mas rapidamente percebi que tudo o que eu fazia era alvo de crítica: desde a forma como vestia os miúdos até à maneira como organizava as refeições ou limpava a casa.

— No meu tempo não era assim — repetia ela, como se eu fosse uma criança desobediente.

O Rui, em vez de me defender, começou a alinhar com ela. Se eu me queixava do cansaço, dizia-me para não ser dramática. Se sugeria irmos dar um passeio em família, respondia que estava cansado ou que não lhe apetecia.

Uma noite, depois de adormecer os gémeos, sentei-me ao lado dele no sofá.

— Rui, precisamos de conversar — disse-lhe baixinho.

Ele nem desviou os olhos do telemóvel.

— Sobre o quê?

— Sobre nós. Sinto que estamos cada vez mais distantes…

Ele suspirou alto.

— Lá vens tu com essas conversas. Não vês que estou cansado? Trabalhei o dia todo!

— Eu também trabalho! E ainda cuido da casa e dos miúdos…

— Pois, mas não tens o peso que eu tenho em cima — atirou ele, levantando-se bruscamente. — Se não fosse a minha mãe, isto já tinha ido tudo por água abaixo.

Fiquei ali sentada, sozinha na sala escura, a ouvir o som da televisão no quarto ao lado. Senti-me invisível.

Os meses foram passando e as discussões tornaram-se rotina. Qualquer coisa era motivo para uma troca de palavras amargas: o jantar que não agradava, os brinquedos espalhados pela casa, as contas por pagar.

Certa tarde, Dona Graça apareceu sem avisar. Entrou pela porta como se fosse dona da casa e foi direta ao quarto dos gémeos.

— Estes miúdos precisam de disciplina! — exclamou ela ao ver os brinquedos espalhados pelo chão.

Tentei explicar-lhe que estavam apenas a brincar, mas ela ignorou-me e começou a arrumar tudo à sua maneira. O Rui chegou pouco depois e deu-lhe razão.

— A minha mãe só quer ajudar — disse-me ele à noite, quando lhe pedi para impor limites.

— Mas isto é a nossa casa! — gritei-lhe eu, já sem conseguir conter as lágrimas.

Ele olhou-me com uma frieza que nunca lhe tinha visto nos olhos.

— Se não gostas, sabes onde está a porta.

Naquela noite dormi no quarto dos gémeos. Ouvi-os respirar suavemente e chorei baixinho para não os acordar. Senti-me derrotada.

Comecei a evitar estar em casa quando Dona Graça vinha. Levava os miúdos ao parque ou à biblioteca. Lá fora sentia-me livre, mas bastava regressar para sentir o peso daquela casa sobre mim.

Um dia, enquanto esperava pelo Tomás à porta da escola primária, encontrei a Marta, uma amiga dos tempos da faculdade.

— Estás tão diferente… — disse ela depois de me ouvir desabafar. — Não podes deixar que te apaguem assim.

As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a pensar em mim própria antes do casamento: gostava de pintar, de ler romances policiais, de sair para dançar com as amigas. Agora sentia-me uma sombra da mulher que fui.

Numa manhã chuvosa de novembro, depois de mais uma discussão com o Rui por causa das contas da luz, tomei uma decisão. Liguei à minha mãe e pedi-lhe para ficar com os gémeos durante umas horas. Fui até ao miradouro da Senhora do Monte e sentei-me ali sozinha, a olhar para Lisboa lá em baixo.

Pensei em tudo o que tinha perdido: a leveza dos primeiros anos com o Rui, a cumplicidade das conversas à noite, os sonhos partilhados. Mas também pensei no que ainda podia recuperar: a minha dignidade, o meu amor-próprio.

Quando voltei para casa nessa noite, encontrei o Rui sentado à mesa da cozinha com Dona Graça ao lado dele. Olharam para mim como se eu fosse uma intrusa na minha própria casa.

— Onde é que estiveste? — perguntou ele seco.

— Precisei de estar sozinha — respondi com firmeza pela primeira vez em muito tempo.

Dona Graça bufou.

— Uma mãe não abandona os filhos assim!

Olhei-a nos olhos.

— Uma mãe também precisa de cuidar de si própria para poder cuidar dos filhos.

O Rui levantou-se abruptamente.

— Isto está a passar dos limites! Ou mudas ou…

Interrompi-o antes que terminasse:

— Ou quê? Vais continuar a fingir que está tudo bem enquanto me vais destruindo aos poucos?

O silêncio caiu pesado sobre nós. Pela primeira vez vi hesitação nos olhos dele.

Nessa noite dormi pouco. Pensei em separar-me, em recomeçar do zero com os gémeos. Tinha medo do futuro mas mais medo ainda de continuar assim: invisível dentro da minha própria vida.

No dia seguinte procurei ajuda psicológica no centro de saúde do bairro. Falei com uma psicóloga chamada Dra. Filipa que me ouviu sem julgar e me ajudou a perceber que não era egoísmo querer ser feliz.

Comecei a fazer pequenas mudanças: voltei a pintar nas horas livres; inscrevi-me num grupo de leitura; aceitei convites para sair com amigas antigas. Aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma.

O Rui percebeu as mudanças e tentou aproximar-se algumas vezes, mas nunca conseguiu pedir desculpa verdadeiramente ou reconhecer o seu papel no nosso afastamento. Dona Graça continuou igual: crítica e controladora.

Hoje olho para trás e vejo tudo com mais clareza. Ainda vivo com o Rui por causa dos gémeos mas já não sou aquela mulher submissa e apagada. Sei que um dia vou ter coragem para dar o próximo passo — seja ele qual for.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas em casamentos onde já não se reconhecem? Quantas deixam morrer os seus sonhos para agradar aos outros? Será possível reconstruir-nos depois de tanto nos perdermos?