Já Não Sou a Empregada Deles: A Minha Luta Por Respeito na Família
— Maria, podes passar a ferro as camisas do João? E não te esqueças de limpar o chão da cozinha, está uma vergonha! — A voz da minha nora, Andreia, ecoou pela casa como um trovão numa noite de verão. Senti o sangue ferver-me nas veias, mas calei-me. Mais uma vez.
Enquanto dobrava as camisas do meu filho, lembrei-me de quando ele era pequeno e vinha pedir-me colo depois de cair e esfolar o joelho. Agora, mal me olhava nos olhos. Desde que casou com a Andreia, parecia que eu tinha deixado de ser mãe para ser apenas uma presença útil — ou pior, invisível — naquela casa.
Vim viver com eles há três anos, depois de o meu marido, António, ter falecido. O vazio da nossa casa em Almada era insuportável e o João insistiu para que viesse para Lisboa. “Assim estás mais perto dos netos”, disse ele. No início, achei que seria bom. Mas rapidamente percebi que a minha presença era mais conveniente do que desejada.
— Mãe, podes ir buscar o Diogo à escola? Eu e a Andreia estamos atrasados no trabalho — pediu-me João numa manhã apressada. Sorri e disse que sim. Era sempre assim: eu ficava com os miúdos, fazia o jantar, limpava a casa. No início, pensei que estava a ajudar. Mas com o tempo, percebi que ninguém agradecia. Era como se fosse minha obrigação.
Certa noite, ouvi Andreia ao telefone com a mãe dela:
— A sério, mãe, não sei como é que vou aguentar isto. A Maria está sempre aqui, mete-se em tudo… E depois ainda se faz de vítima! — Senti um nó na garganta. Fui para o quarto e chorei baixinho, para ninguém ouvir.
No dia seguinte, tentei falar com João.
— Filho, achas que estou a incomodar? — perguntei-lhe com a voz trémula.
Ele olhou para mim, distraído com o telemóvel.
— Não digas disparates, mãe. Só tens de ajudar um bocadinho mais, sabes como é…
Um bocadinho mais? Já não me lembrava da última vez que tinha tido um dia só para mim. Até as minhas amigas do centro de dia deixei de ver. Senti-me sozinha no meio da minha própria família.
O ponto de rutura chegou numa tarde de domingo. Estava na cozinha a preparar o almoço quando ouvi Andreia reclamar:
— Maria! O Diogo sujou-se todo no jardim! Pode dar-lhe banho? E depois trate da roupa dele, por favor.
Olhei para ela e vi nos olhos dela não um pedido, mas uma ordem. Respirei fundo e disse:
— Andreia, acho que já chega. Não sou vossa empregada.
Ela ficou boquiaberta.
— Desculpe? — perguntou num tom frio.
— Ouviste bem. Vim para cá porque precisava de companhia e pensei que podia ajudar. Mas não vim para ser tratada como criada.
O silêncio caiu na sala como uma pedra pesada. João entrou nesse momento e percebeu logo que algo se passava.
— O que se passa aqui?
Andreia virou-se para ele:
— A tua mãe acha que não tem de ajudar em casa!
Olhei para o meu filho e vi nele um estranho. Ele hesitou antes de responder:
— Mãe… tu sabes que precisamos de ti…
— Precisam ou aproveitam-se? — perguntei, sentindo as lágrimas a quererem cair.
Nesse momento percebi: estava sozinha. Ninguém ali me via como pessoa. Só como alguém que fazia tudo sem reclamar.
Nessa noite não dormi. Pensei em tudo o que tinha dado àquela família: os sacrifícios, as noites sem dormir quando o João era bebé, os anos em que trabalhei numa fábrica para lhe pagar os estudos… E agora era tratada como um estorvo.
Na manhã seguinte, fiz as malas em silêncio. Escrevi um bilhete:
“João e Andreia,
Preciso de pensar em mim. Vou ficar uns tempos com a minha irmã Rosa em Setúbal. Espero que percebam.”
Quando saí de casa, senti um misto de medo e alívio. A Rosa recebeu-me de braços abertos.
— Finalmente tomaste coragem! — disse ela ao ver-me à porta.
Durante semanas chorei muito. Senti falta dos netos, mas também senti uma liberdade há muito esquecida. Voltei a ir ao centro de dia, reencontrei amigas antigas e até comecei a fazer hidroginástica.
O João ligou-me várias vezes. No início estava zangado:
— Mãe, como é que nos fazes isto? Os miúdos sentem a tua falta!
Mas eu mantive-me firme:
— João, eu também sinto falta deles. Mas preciso de ser respeitada.
Com o tempo, ele começou a perceber. Um dia apareceu em Setúbal com os miúdos.
— Mãe… desculpa. Nunca pensei que estivesses tão magoada.
Chorei nos braços dele como há muitos anos não chorava.
A Andreia nunca me pediu desculpa diretamente, mas notei uma diferença quando voltei a visitá-los: já não me davam ordens; perguntavam se podia ajudar e agradeciam sempre.
Hoje sei que foi preciso coragem para dizer basta. Não foi fácil perder o medo de desiludir quem amamos. Mas aprendi que só podemos cuidar dos outros se cuidarmos primeiro de nós próprios.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam caladas por medo de serem rejeitadas pela própria família? Será que algum dia vamos aprender a valorizar quem nos ama verdadeiramente?