Entre a Infância e a Responsabilidade: A História de uma Jovem Mãe em Braga
— Não podes estar a falar a sério, Inês! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas e a voz a tremer entre o choque e a raiva. O meu pai, sentado à mesa da cozinha, olhava para o chão, incapaz de me encarar. O cheiro do café frio misturava-se com o silêncio pesado que se abateu sobre nós. Eu sentia o coração a bater tão forte que quase me doía no peito.
Naquela noite de outubro, a chuva batia nas janelas como se quisesse entrar e lavar tudo aquilo que eu sentia. Tinha dezasseis anos e um teste de gravidez positivo escondido no bolso do casaco. O André — o rapaz por quem eu achava estar apaixonada — não me atendia as chamadas há dias. Senti-me sozinha como nunca antes.
A minha mãe levantou-se de repente, empurrando a cadeira para trás com força. — Como é que foste capaz? E agora? O que é que vamos dizer à família? — A vergonha era quase palpável na sua voz. O meu pai continuava calado, mas os seus ombros caídos diziam tudo.
Eu queria gritar que não tinha sido de propósito, que também estava assustada, mas as palavras não saíam. Só consegui murmurar: — Desculpa, mãe…
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. A minha avó materna recusou-se a falar comigo durante semanas. As minhas tias cochichavam sempre que eu entrava na sala. Até o meu irmão mais novo, o Miguel, me olhava com uma mistura de curiosidade e medo.
Na escola, os olhares eram ainda piores. As amigas afastaram-se lentamente, como se a minha barriga invisível fosse contagiosa. A professora de Matemática chamou-me ao corredor e disse baixinho: — Inês, tens de pensar no teu futuro. Não podes desistir agora.
Mas eu já sentia que o meu futuro tinha sido arrancado das minhas mãos naquela noite chuvosa.
O André apareceu uma semana depois, à porta de casa, com um ar nervoso e as mãos nos bolsos. — Inês, desculpa… Eu não sei se consigo ser pai agora. Os meus pais vão matar-me se souberem.
Olhei para ele e percebi que estava sozinha nisto. Não podia contar com ele. Não podia contar com ninguém.
As semanas passaram devagar. O corpo começou a mudar antes mesmo de eu aceitar o que estava a acontecer. A minha mãe passou da raiva ao silêncio frio; só falava comigo para perguntar se já tinha marcado consulta no centro de saúde.
Uma noite, ouvi os meus pais a discutir no quarto ao lado:
— Ela vai estragar a vida dela! — dizia a minha mãe.
— É nossa filha — respondia o meu pai, mais calmo. — Não podemos abandoná-la agora.
Chorei baixinho na almofada, desejando voltar atrás no tempo.
Quando finalmente fui à consulta, a enfermeira olhou para mim com pena disfarçada. — Tens apoio em casa? — perguntou.
Encolhi os ombros. Não sabia responder.
Os meses seguintes foram uma luta constante contra o cansaço, os enjoos e o medo do futuro. A barriga crescia e com ela crescia também o julgamento dos outros. No supermercado, as vizinhas olhavam-me de lado; na rua, ouvia comentários sussurrados: “Tão nova… Que vergonha…”
A minha mãe começou a amolecer quando sentiu o bebé mexer pela primeira vez. Uma noite, sentou-se ao meu lado na cama e segurou-me na mão:
— Eu também tive medo quando soube que estava grávida de ti… Mas vais conseguir, filha. Vais ver.
Foi a primeira vez em meses que senti algum conforto.
O parto foi difícil. Estive horas em trabalho de parto no Hospital de Braga, rodeada por enfermeiras apressadas e médicos indiferentes. O André não apareceu. A minha mãe ficou comigo o tempo todo, apertando-me a mão até quase me magoar.
Quando finalmente ouvi o choro da Leonor — dei-lhe o nome da minha avó paterna — senti uma onda de amor e pânico ao mesmo tempo. Como é que eu ia cuidar dela? Como é que ia ser mãe quando ainda me sentia uma criança?
Os primeiros meses foram um nevoeiro de noites sem dormir, fraldas sujas e lágrimas (minhas e dela). A minha mãe ajudava quando podia, mas tinha voltado ao trabalho e eu ficava sozinha em casa com a Leonor durante horas.
O André desapareceu completamente da nossa vida. Mandou uma mensagem no primeiro aniversário da Leonor: “Parabéns à miúda.” Nunca mais respondeu às minhas tentativas de contacto.
A escola ficou para trás. Tentei estudar em casa, mas era impossível conciliar os livros com os choros da Leonor e as tarefas domésticas. Senti-me presa numa rotina sem fim.
Um dia, ao ir buscar pão à padaria do bairro, ouvi duas vizinhas a falarem baixo:
— Aquela é a miúda que ficou grávida cedo demais…
— Coitada da mãe dela…
Voltei para casa com vontade de desaparecer.
Mas aos poucos comecei a encontrar pequenas alegrias: o sorriso da Leonor quando acordava de manhã; os primeiros passos trémulos; as gargalhadas quando brincávamos no tapete da sala.
A minha mãe tornou-se o meu maior apoio. Começou a levar-me ao centro comunitário onde havia outras mães jovens como eu. Ali percebi que não estava sozinha; havia outras raparigas com histórias parecidas, medos iguais aos meus.
Comecei a sonhar novamente com um futuro diferente. Inscrevi-me num curso noturno para terminar o secundário. A Leonor ficava com os avós nessas noites e eu sentia-me livre por algumas horas, como se recuperasse um pedaço da Inês que fui antes de tudo isto acontecer.
O meu pai também mudou com o tempo. No início mal falava comigo; agora era ele quem embalava a Leonor para adormecer ou lhe ensinava palavras novas.
A relação com a minha avó materna demorou mais tempo a sarar. Só quando viu a Leonor dar os primeiros passos é que se aproximou:
— És forte, Inês… Mais do que eu pensei.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi: amigos, sonhos de adolescência, liberdade. Mas também vejo tudo o que ganhei: maturidade, coragem e um amor incondicional pela minha filha.
Às vezes pergunto-me como teria sido se tivesse feito outras escolhas. Se tivesse tido mais apoio desde o início; se o André tivesse ficado; se não tivesse sentido tanta vergonha e medo.
Mas depois olho para a Leonor a brincar no tapete da sala e penso: será que alguma vez teria descoberto esta força dentro de mim se não tivesse passado por tudo isto?
E vocês? Acham que as dificuldades nos tornam mais fortes ou apenas nos roubam aquilo que poderíamos ter sido?