Depois dos Cinquenta: Quando o Amor se Torna um Estranho em Casa
— Maria, viste as minhas sapatilhas novas? — perguntou o António, com uma voz que parecia mais leve do que o habitual, enquanto remexia no armário do corredor.
Olhei para ele, ainda meio ensonada, e reparei que já não era o mesmo homem que adormecia ao meu lado há quase trinta anos. O cabelo, antes grisalho e despenteado, agora estava cortado à moda, com gel e tudo. Tinha perdido quase dez quilos nos últimos meses e até o cheiro dele mudara — agora usava um perfume caro, daqueles que só via nas montras do El Corte Inglés.
— Estão na sapateira, António. Como sempre — respondi, tentando disfarçar o nó na garganta. Ele sorriu-me de relance, mas não era aquele sorriso cúmplice de outros tempos. Era um sorriso ensaiado, quase como se estivesse a praticar para alguém.
No início, achei graça. Pensei: “Finalmente percebeu que também mereço um marido que se cuida.” Até comecei a cuidar mais de mim — comprei um batom novo, pintei o cabelo, tentei perder uns quilinhos. Mas quanto mais eu me esforçava, mais ele parecia afastar-se.
As conversas à mesa do jantar tornaram-se monossilábicas. O António estava sempre agarrado ao telemóvel, a rir-se baixinho de mensagens que nunca partilhava comigo. Quando lhe perguntava com quem falava, respondia sempre:
— É só o João do trabalho. Estamos a organizar o torneio de padel.
Mas eu conhecia o João. O João mal sabia enviar um SMS.
As noites começaram a ser passadas em silêncio. Eu de um lado da cama, ele do outro. Às vezes, fingia que dormia só para não ter de enfrentar o vazio entre nós. Oiço-o a suspirar, a mexer-se inquieto. Sinto-o distante, como se já não estivesse ali.
Um domingo à tarde, enquanto arrumava a roupa dele — agora cheia de camisas novas e calças justas — encontrei um recibo de um jantar para dois num restaurante caro em Lisboa. Não era aniversário de ninguém. Não era data especial. O coração bateu-me tão forte que quase deixei cair o ferro de engomar.
Confrontei-o naquela noite:
— António, foste jantar fora sem me dizeres nada?
Ele hesitou por um segundo, depois encolheu os ombros:
— Era só um jantar com colegas do trabalho.
— Para dois? Num restaurante daqueles?
O silêncio dele foi mais doloroso do que qualquer resposta. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as com orgulho.
A partir desse dia, comecei a reparar em tudo: os telefonemas às escondidas na varanda, as mensagens apagadas do telemóvel, as desculpas para sair de casa ao fim-de-semana. Até os filhos começaram a notar.
— Mãe, o pai anda estranho — disse-me a Inês numa noite em que ficou para jantar.
— Deve ser da idade — tentei brincar, mas a voz saiu-me trémula.
A Inês olhou para mim com aqueles olhos grandes e preocupados:
— Não deixes que ele te faça sentir menos do que és.
Foi aí que percebi que estava a perder-me a mim própria naquela relação. Passei a vida inteira a cuidar dos outros: dos filhos, da casa, do António. E agora? Agora sentia-me invisível.
Uma noite, depois de mais uma discussão sem sentido sobre nada — porque era sempre sobre nada — sentei-me na varanda e chorei como há muito não chorava. Lembrei-me dos tempos em que éramos felizes: das férias no Algarve com os miúdos pequenos, dos jantares improvisados à luz das velas quando faltava a eletricidade no bairro, das cartas de amor escondidas nas gavetas.
Onde é que tudo se perdeu?
O António entrou na varanda e ficou ali parado, sem saber o que dizer. Finalmente murmurou:
— Maria… eu já não sei quem sou contigo.
Essas palavras ficaram-me cravadas no peito como uma faca. Não era só ele que já não sabia quem era comigo — eu também já não sabia quem era sem ele.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e olhares vazios. Os filhos começaram a evitar vir cá a casa. Os vizinhos cochichavam no elevador. Até a minha mãe me ligou preocupada:
— Mariazinha, está tudo bem?
E eu respondia sempre:
— Está tudo bem, mãe. Está tudo bem.
Mas não estava.
Um dia, decidi seguir o António depois do trabalho. Senti-me ridícula — uma mulher de cinquenta e três anos a espiar o próprio marido pelas ruas de Lisboa. Vi-o entrar num café perto do Saldanha e sentar-se com uma mulher mais nova, elegante, cabelo castanho apanhado num coque perfeito. Riam-se juntos como dois adolescentes.
Senti-me pequena. Senti-me velha. Senti-me traída.
Voltei para casa antes dele chegar. Quando entrou, olhou para mim como se fosse uma estranha sentada no sofá da própria sala.
— Temos de falar — disse-lhe eu, finalmente com coragem na voz.
Ele sentou-se à minha frente e baixou os olhos.
— Maria… eu não queria magoar-te. Mas sinto-me perdido há anos. Não é culpa tua. És uma mulher incrível… só que eu já não sou o homem que eras quando casámos.
As lágrimas correram-me pelo rosto sem controlo.
— E achas que eu sou a mesma mulher? Achas que não mudei? Achas que não tive medo todos os dias de te perder?
Ele ficou calado. O silêncio entre nós era ensurdecedor.
Naquela noite dormimos em quartos separados pela primeira vez em trinta anos.
Os dias passaram devagarinho. O António começou a passar mais tempo fora de casa. Eu comecei a sair mais com amigas antigas — fui ao cinema com a Teresa, almocei com a Ana no Chiado, voltei a fazer aulas de pintura na Junta de Freguesia.
Descobri que ainda havia vida fora daquele casamento moribundo.
Um dia, sentei-me com os meus filhos à mesa da cozinha e contei-lhes tudo. A Inês chorou comigo; o Miguel ficou calado durante muito tempo e depois abraçou-me como quando era pequeno.
— Mãe, estamos aqui para ti — disse ele.
O António acabou por sair de casa umas semanas depois. Foi doloroso ver as gavetas vazias, o lado dele da cama frio todas as noites. Mas também foi libertador perceber que sobrevivi.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas numa relação onde já não são vistas? Quantas fingem todos os dias que está tudo bem só para não enfrentar o vazio?
Será que é possível recomeçar depois dos cinquenta? Será que algum dia voltarei a confiar em alguém como confiei no António?
E vocês? Já sentiram este vazio dentro das próprias paredes de casa?