Entre a Fé e o Silêncio: O Meu Recomeço Depois da Tempestade
— Não sei se consigo continuar assim, Leonor. — A voz do Miguel tremia, mas os olhos estavam frios, distantes. Era uma terça-feira chuvosa, e o som das gotas a bater no vidro misturava-se com o silêncio pesado da nossa sala. Eu segurava uma chávena de chá já fria, as mãos trémulas, o coração aos saltos.
— O que é que queres dizer com isso? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.
Ele desviou o olhar para o chão, como se ali encontrasse as palavras que lhe faltavam. — Não sei se ainda te amo. Não sei se ainda amo esta vida.
O chão fugiu-me dos pés. Foram anos de casamento, duas filhas pequenas, uma casa construída com sacrifício e sonhos partilhados. E agora, tudo parecia desmoronar-se com meia dúzia de palavras ditas num sussurro. Senti-me traída, não por outra mulher, mas pela indiferença, pelo cansaço, pela ausência de esperança.
Durante semanas, vivemos como estranhos. O Miguel chegava tarde, jantava em silêncio e desaparecia para o escritório. As meninas perguntavam por ele e eu inventava desculpas: “O pai está cansado”, “O pai tem muito trabalho”. Mas à noite, sozinha na cama fria, perguntava-me onde é que eu tinha falhado.
A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem. Um domingo à tarde, enquanto lavávamos a loiça juntas, ela pousou a mão enrugada sobre a minha.
— Leonor, filha… não guardes tudo para ti. Deus ouve-te sempre, mas às vezes precisamos de falar com quem está cá.
Chorei nos braços dela como uma criança. Contei-lhe tudo: as discussões abafadas para não acordar as meninas, os silêncios cortantes, o medo de acordar sozinha um dia. Ela ouviu-me sem julgar, apenas apertando-me contra o peito.
— Reza, filha. Mesmo quando sentires que não há ninguém a ouvir-te. Deus nunca te abandona.
Nessa noite ajoelhei-me ao lado da cama. Não sabia bem o que pedir — queria que tudo voltasse ao normal, queria sentir-me amada outra vez, queria que as minhas filhas não crescessem num lar partido. Mas acima de tudo pedi força para não me perder.
Os dias seguintes foram um exercício de sobrevivência. No trabalho fingia normalidade, sorria para os colegas e respondia aos clientes como se nada estivesse errado. Em casa, era mãe e dona de casa exemplar: ajudava nas tarefas da escola, preparava jantares saudáveis, mantinha a casa impecável. Mas por dentro sentia-me vazia.
Uma noite ouvi o Miguel ao telefone no escritório. A porta estava entreaberta e não resisti a espreitar. Não era uma conversa romântica com outra mulher — era com o irmão dele. Falava sobre mim.
— A Leonor mudou tanto… já não sei quem ela é. Sinto-me sufocado nesta rotina.
Fechei a porta devagarinho e voltei para o meu quarto. Pela primeira vez não chorei. Senti raiva — dele por desistir tão facilmente, de mim por me anular tanto tempo.
No domingo seguinte fui à missa sozinha. Sentei-me no último banco e deixei as lágrimas correrem livres enquanto o padre falava sobre perdão e recomeço. Senti uma paz estranha a invadir-me — como se Deus me dissesse que eu também merecia ser feliz.
Comecei a rezar todas as noites. Não pedia mais pelo casamento; pedia por mim mesma, para encontrar coragem para enfrentar o que viesse.
Certa manhã acordei antes do despertador e olhei para o Miguel a dormir ao meu lado. Parecia tão vulnerável, tão diferente do homem frio dos últimos meses. Senti compaixão — por ele e por mim.
Quando ele acordou, sentei-me na beira da cama e disse:
— Miguel, precisamos de falar. Não quero continuar assim. Se já não me amas, diz-me agora. Não quero viver nesta incerteza.
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que ia levantar-se e sair sem dizer palavra. Mas depois olhou-me nos olhos e vi lágrimas ali — lágrimas verdadeiras.
— Tenho medo, Leonor. Medo de te magoar mais ainda… Medo de perder as meninas… Medo de admitir que falhei.
Abracei-o com força. Pela primeira vez em meses senti que estávamos juntos na dor.
Decidimos procurar ajuda — fomos falar com o padre António, que nos ouviu sem julgar e sugeriu terapia de casal com uma psicóloga da paróquia. As primeiras sessões foram duras: houve gritos, acusações antigas, mágoas guardadas durante anos. Mas também houve momentos de ternura inesperada — como quando o Miguel confessou que sentia falta do tempo em que ríamos juntos por tudo e por nada.
As meninas perceberam que algo mudara em casa. Começaram a desenhar corações e a deixar bilhetes nas nossas almofadas: “Gosto muito de ti”, “Amo-te mãe”, “Amo-te pai”. Aqueles papéis coloridos eram pequenos milagres diários.
A fé foi o meu refúgio durante todo este processo. Não foi fácil perdoar — nem ao Miguel nem a mim mesma pelas vezes em que deixei de lutar por nós. Mas aprendi que amar é também aceitar as imperfeições do outro e as nossas próprias limitações.
Houve dias em que pensei desistir — fazer as malas e recomeçar sozinha com as meninas. Mas cada vez que me ajoelhava para rezar sentia uma força maior do que eu própria a segurar-me firme.
Hoje olho para trás e vejo quanto crescemos — juntos e separados. O nosso casamento não voltou a ser perfeito (talvez nunca tenha sido), mas aprendemos a falar sem medo, a pedir desculpa sem orgulho, a rir das pequenas coisas outra vez.
Ainda há dias maus — discussões sobre dinheiro ou educação das meninas — mas agora sabemos parar antes de magoar demasiado. E todas as noites agradeço por ter encontrado em Deus a coragem para não desistir quando tudo parecia perdido.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas no silêncio por medo ou vergonha? Quantas Leonores há por aí a rezar baixinho para não se perderem? Será que partilhar esta história pode ajudar alguém a encontrar também um recomeço?