Laços Partidos: A Minha Mãe Sempre Escolheu a Minha Irmã
— Porquê, mãe? Porquê é que fizeste isto? — perguntei, com a voz embargada, enquanto segurava o boneco do Super-Homem que eu própria tinha embrulhado para o meu filho, agora nas mãos do Tomás, o filho da minha irmã Inês.
A minha mãe olhou para mim como se eu estivesse a exagerar, como se não fosse nada. — Oh, Mariana, não faças uma tempestade num copo de água. O Tomás queria tanto este boneco e tu sabes que o teu Miguel já tem brinquedos suficientes.
Senti o sangue ferver-me nas veias. O Miguel olhava para mim com aqueles olhos grandes, cheios de perguntas que eu não sabia responder. A minha filha mais nova, a Leonor, estava sentada no chão, abraçada às pernas, sem perceber porque é que os primos tinham presentes novos e ela não.
Naquele momento, tudo o que sempre tentei ignorar veio ao de cima. Lembrei-me das vezes em que a Inês partia os meus brinquedos e a mãe dizia que eu tinha de ser compreensiva porque ela era mais nova. Das vezes em que eu tirava boas notas e a mãe dizia “a tua irmã também vai conseguir, não te armes”. Dos natais em que os presentes da Inês eram sempre mais caros, mais bonitos, mais desejados.
Mas agora era diferente. Agora eram os meus filhos. E eu não conseguia aceitar.
— Mãe, tu não percebes o que isto faz aos meus filhos? — tentei controlar as lágrimas. — Eles sentem-se menos importantes. Eu sinto-me menos importante.
A Inês entrou na sala nesse momento, com aquele ar triunfante de quem nunca teve de lutar por nada. — Mariana, não sejas dramática. O Tomás ficou tão feliz! E tu sabes que ele tem tido dificuldades na escola, precisa de um mimo.
Olhei para ela e vi tudo aquilo que sempre me magoou: a facilidade com que conseguia tudo, a forma como a mãe a defendia sempre, mesmo quando estava errada. Senti-me pequena, invisível.
O meu marido, o Rui, aproximou-se e pôs-me a mão no ombro. — Vamos embora — disse baixinho. — Isto não vale a pena.
Mas eu não conseguia sair sem dizer tudo aquilo que me sufocava há anos.
— Sabes o que é crescer sempre em segundo lugar? Sabes o que é sentir que nunca és suficiente? — perguntei à minha mãe, já sem conseguir conter as lágrimas. — Eu tentei tanto agradar-te, tentei tanto ser vista… E agora fazes isto aos meus filhos?
A sala ficou em silêncio. O meu pai estava sentado no canto, como sempre, calado, fingindo que nada se passava. Era assim desde sempre: ele nunca se metia, nunca defendia ninguém.
A minha mãe suspirou e encolheu os ombros. — Mariana, tu és tão sensível… Sempre foste. A tua irmã precisa mais de mim.
— E eu? — gritei quase sem querer. — Eu nunca precisei? Nunca precisei de um abraço teu? Nunca precisei de sentir que era especial?
A Inês revirou os olhos e saiu da sala com o Tomás pela mão. O Miguel começou a chorar baixinho e eu ajoelhei-me ao lado dele.
— Desculpa, meu amor… — sussurrei-lhe ao ouvido. — A mãe está aqui.
Saímos de casa dos meus pais nesse dia sem dizer adeus. No carro, o Rui apertou-me a mão com força.
— Não tens de voltar lá se não quiseres — disse ele. — Já chega de te magoarem.
Durante dias não consegui dormir. A imagem dos meus filhos tristes perseguia-me. Lembrei-me de todas as vezes em criança em que desejei ser vista pela minha mãe, em que desejei ouvir um “gosto tanto de ti” dito só para mim.
Comecei a evitar telefonar-lhe. Ela também não ligou. O silêncio entre nós tornou-se uma parede cada vez mais alta.
Uma semana depois recebi uma mensagem da Inês: “A mãe está triste por causa do que disseste. Devias pedir desculpa.” Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Eu? Pedir desculpa?
Respondi apenas: “Quando ela pedir desculpa aos meus filhos por lhes tirar o direito de serem netos como os outros, talvez eu pense nisso.”
O Rui apoiou-me sempre. Mas as dúvidas começaram a corroer-me por dentro. Estaria eu a exagerar? Estaria a privar os meus filhos dos avós por causa das minhas mágoas antigas?
Numa noite chuvosa, sentei-me na sala com o Miguel ao colo.
— Mãe, porque é que a avó gosta mais do Tomás? — perguntou ele baixinho.
O meu coração partiu-se outra vez.
— Não é isso, amor… Às vezes as pessoas mostram o amor de maneiras estranhas… Mas eu prometo-te: tu és muito amado.
Ele sorriu e abraçou-me com força. Mas eu sabia que aquela ferida ia ficar ali durante muito tempo.
Os meses passaram e as festas de família tornaram-se cada vez mais raras para nós. A Inês continuava a enviar mensagens passivo-agressivas: “A mãe sente a tua falta”, “O Tomás pergunta pelos primos”. Mas nunca ninguém me pediu desculpa.
No aniversário do Miguel decidi fazer uma festa só para ele e para os amigos da escola. Não convidei os meus pais nem a minha irmã. Pela primeira vez senti-me livre daquela obrigação de agradar a todos menos a mim própria.
No final da festa sentei-me no jardim com o Rui e vi o Miguel correr atrás da Leonor, ambos felizes, ambos inteiros.
— Achas que estou a ser má filha? — perguntei ao Rui.
Ele olhou para mim com ternura.
— Acho que estás finalmente a ser boa para ti própria.
Naquela noite escrevi uma carta à minha mãe. Não para enviar, mas para libertar tudo aquilo que me pesava no peito:
“Mãe,
Sempre tentei ser aquilo que tu querias. Sempre aceitei ficar em segundo plano porque pensei que um dia ias reparar em mim. Mas agora vejo que não posso continuar a permitir que me magoes — nem aos meus filhos. Gostava de te perdoar, mas preciso primeiro de me perdoar por ter deixado isto acontecer durante tanto tempo. Espero que um dia consigas ver-me como sou: tua filha, mas também uma pessoa inteira e merecedora de amor.”
Guardei a carta na gaveta e senti um alívio estranho.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas vivem presas à necessidade de serem amadas pelos pais acima de tudo? Quantos filhos crescem à sombra dos irmãos preferidos?
E vocês? Já sentiram esta dor silenciosa dentro da vossa própria família?