Mensagens Escondidas no Telemóvel do Manel: Entre a Dúvida e o Perdão – Confissões de uma Mulher Portuguesa
— Quem é esta Teresa? — perguntei, com a voz a tremer, segurando o telemóvel do Manel como se fosse uma arma prestes a disparar. Ele estava sentado à mesa da cozinha, ainda com o guardanapo ao colo, e olhou para mim como se eu tivesse acabado de lhe pedir para explicar o sentido da vida.
— O que é que estás para aí a dizer, Maria? — respondeu ele, tentando sorrir, mas os olhos fugiram dos meus. — Que Teresa?
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que até o relógio da parede pareceu parar. Eu sabia que não devia ter mexido no telemóvel dele, mas aquela notificação inesperada — “Saudades tuas, Manelinho” — tinha-me queimado por dentro. Quarenta anos de casamento, três filhos criados, netos a correr pela casa… E agora isto.
Lembro-me de ter sentido o chão fugir-me dos pés. O Manel sempre foi um homem reservado, mas nunca pensei que me escondesse alguma coisa. Ou talvez tenha sido eu que nunca quis ver. A verdade é que, nos últimos meses, ele andava diferente: mais calado, mais ausente, a chegar tarde do café com os amigos. E eu, entre as lides da casa e as idas ao mercado, fui-me convencendo de que era só cansaço da idade.
Mas aquela mensagem… aquela mensagem era impossível de ignorar.
— Não me mintas, Manel. Não agora. Quem é esta mulher? — insisti, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.
Ele suspirou fundo e passou as mãos pelo rosto.
— Maria, por favor… Não é nada do que estás a pensar. A Teresa é só uma amiga do grupo de cartas. Ela perdeu o marido há pouco tempo e anda muito em baixo. Eu só tentei animá-la um bocadinho…
— “Saudades tuas”? — interrompi, quase a gritar. — Que raio de amizade é essa?
Ele não respondeu. Ficou ali, a olhar para as mãos, como se procurasse nelas uma resposta que não vinha. E eu senti uma raiva tão grande que tive vontade de atirar-lhe com o telemóvel à cabeça.
Naquela noite, dormimos em quartos separados pela primeira vez desde que casámos. Oiço-o ressonar no quarto ao lado e penso em tudo o que construímos juntos: as férias em Vila Nova de Milfontes quando os miúdos eram pequenos, as noites de Natal com a família toda à volta da mesa, os domingos preguiçosos em que ele me fazia café na cama… Será que tudo isso não vale nada?
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei-lhe o pequeno-almoço como sempre, mas não consegui olhar-lhe nos olhos. Ele tentou conversar comigo, mas eu só queria silêncio. Os nossos filhos ligaram para saber como estávamos e eu fingi que estava tudo bem. Não queria preocupá-los nem dar-lhes motivos para julgarem o pai.
Durante dias vivi num limbo entre o desejo de confrontá-lo outra vez e o medo de descobrir algo ainda pior. Fui falar com a minha irmã, a Lurdes, que sempre foi mais prática do que eu.
— Maria, tu tens de falar com ele a sério — disse-me ela enquanto bebíamos chá na varanda dela em Almada. — Não podes viver assim. Ou confias nele ou então vais acabar por te destruir.
— Mas como é que se confia depois disto? — perguntei-lhe, sentindo-me pequena como uma criança perdida.
Ela encolheu os ombros.
— O amor não é só rosas e juras eternas. Às vezes é lama e pedras no caminho. Mas também pode ser perdão… se tu quiseres.
As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenas coisas: o Manel continuava a ajudar-me nas tarefas da casa, preocupava-se comigo quando eu tossia mais forte por causa da asma, fazia questão de jantar comigo mesmo quando estava cansado. E eu comecei a perguntar-me se estaria a exagerar.
Uma tarde, decidi ir ao café onde ele costumava jogar cartas. Sentei-me numa mesa ao fundo e esperei. Vi-o rir-se com os amigos, vi-o cumprimentar a tal Teresa — uma mulher magra, de cabelo grisalho e olhar triste — e vi como ela lhe agradeceu por lhe trazer um bolo caseiro.
Quando ele me viu ali, ficou pálido.
— Maria? O que fazes aqui?
Levantei-me devagar e aproximei-me deles.
— Vim conhecer a famosa Teresa — disse eu, tentando sorrir apesar do nó na garganta.
Ela olhou para mim com surpresa e depois sorriu timidamente.
— O Manel tem sido um grande amigo nesta fase difícil… Perdi o meu António há seis meses e tem sido complicado levantar-me da cama todos os dias.
Senti um alívio misturado com vergonha por ter desconfiado tanto do meu marido. Mas também senti raiva dele por não me ter contado tudo desde o início.
No caminho para casa, caminhámos lado a lado em silêncio até que ele parou e segurou-me na mão.
— Desculpa não te ter contado tudo… Achei que ias ficar preocupada ou ciumenta sem razão. Mas devia ter confiado em ti.
Olhei-o nos olhos e vi ali o mesmo homem com quem casei há quarenta anos: teimoso, orgulhoso mas profundamente bom.
— Eu também devia ter confiado mais em ti… — admiti baixinho.
Voltámos para casa de mãos dadas pela primeira vez em semanas. Nessa noite falámos durante horas sobre tudo: os nossos medos, as nossas inseguranças, as saudades dos filhos que já não vivem connosco. Chorámos juntos e rimos das nossas parvoíces.
A confiança não voltou de um dia para o outro. Ainda hoje há momentos em que me lembro daquela mensagem e sinto um aperto no peito. Mas aprendi que o amor verdadeiro não é feito só de certezas; é feito também de dúvidas partilhadas e perdões sinceros.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixamos que o medo nos roube aquilo que mais amamos? E será possível amar alguém sem nunca duvidar dele? Talvez seja essa a verdadeira coragem do amor.