O Peso do Meu Pai: Quando a Família Deixa de Ser Porto Seguro
— Mariana, não te esqueças de pagar a conta da luz esta semana, ouviu? — A voz do meu pai ecoou pela cozinha, carregada de uma autoridade que já não lhe pertencia há anos. Eu estava com o Vicente ao colo, ainda com cheiro a leite, tentando acalmá-lo depois de mais uma noite mal dormida. O meu corpo doía, a cabeça latejava, e aquela exigência soou como um trovão num céu já carregado.
Olhei para ele, sentado à mesa, a folhear o jornal como se nada fosse. Desde que a mãe morreu, há dois anos, o meu pai mudou-se para minha casa. No início, achei que seria bom para ambos: ele precisava de companhia, eu precisava de apoio. Mas rapidamente percebi que o equilíbrio era frágil e que o peso da convivência podia esmagar.
— Pai, eu estou de licença de maternidade. O dinheiro não estica. — arrisquei, tentando manter a voz firme.
Ele nem levantou os olhos do jornal. — Mariana, tu sabes que eu não tenho como pagar essas coisas agora. E afinal, esta casa também é minha.
Aquelas palavras caíram como pedras no meu peito. Era verdade: a casa era dos dois, herança da mãe. Mas desde que o Vicente nasceu, tudo mudou. O meu marido, Rui, trabalha por turnos e quase não está em casa. Eu fico sozinha com o bebé e com o meu pai, que parece ter desaprendido a viver por si.
Lembro-me do dia em que o convidei para vir morar connosco. Ele estava tão perdido sem a mãe… Chorava à noite, ligava-me a horas impróprias só para ouvir a minha voz. Senti-me responsável por ele. Mas agora era eu quem chorava em silêncio, sufocada pela responsabilidade de ser mãe e filha ao mesmo tempo.
— Mariana, não te esqueças do pão! — gritou ele da sala quando me preparava para sair com o Vicente no carrinho.
— Já vou, pai… — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
No supermercado, enquanto embalava as compras com uma mão e embalava o Vicente com a outra, ouvi duas senhoras comentarem:
— Aquela é a Mariana, filha do senhor António. Dizem que ela é uma santa…
Sorri amarelo. Se soubessem…
À noite, depois de adormecer o Vicente e arrumar a cozinha (porque o meu pai já não lava um prato), sentei-me no sofá e liguei à minha irmã mais velha, Teresa.
— Teresa, eu não aguento mais… Ele não faz nada! Só exige! Eu estou exausta…
Ela suspirou do outro lado da linha. — Mariana, sabes como ele é. Sempre foi assim desde que a mãe morreu. Mas tu também tens de te impor…
— Impor-me? Como? Ele faz-me sentir culpada por tudo! Se reclamo, diz logo: “Depois daquilo que fiz por ti…”
— Talvez esteja na altura de lhe dizeres que as coisas têm de mudar.
Desliguei sem resposta. Como dizer ao meu próprio pai que estava a mais na minha vida? Que precisava dele como apoio e não como mais um filho?
No dia seguinte, tentei conversar com ele.
— Pai, precisamos de falar… — comecei, sentando-me à sua frente.
Ele olhou-me desconfiado. — O que foi agora?
— Eu preciso que me ajudes mais em casa. Não consigo fazer tudo sozinha…
Ele encolheu os ombros. — Mariana, eu já sou velho. Não tenho forças para essas coisas.
— Mas tens força para sair todas as tardes para jogar às cartas no café! — explodi sem querer.
O silêncio caiu pesado entre nós. Ele levantou-se devagar e saiu da sala sem dizer palavra.
Nessa noite não jantou connosco. Fiquei a olhar para o prato vazio à mesa e senti uma culpa esmagadora. O Vicente chorou mais do que o costume; talvez sentisse o ambiente pesado.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. O Rui começou a notar o clima tenso em casa.
— Mariana, isto assim não pode continuar. O teu pai está a consumir-te… — disse-me numa noite em que finalmente conseguimos jantar juntos.
— Eu sei… mas é o meu pai! Não posso simplesmente mandá-lo embora…
— E tu? Vais continuar a sacrificar-te até quando?
A pergunta ficou a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a evitar estar em casa; passeava com o Vicente horas a fio só para não enfrentar aquele ambiente tóxico.
Uma tarde encontrei a Dona Emília no parque.
— Mariana, estás tão magra! Está tudo bem?
Desabei ali mesmo, sentada no banco do jardim.
— Não aguento mais… Sinto-me prisioneira na minha própria casa!
Ela apertou-me a mão com ternura. — Às vezes temos de pensar em nós primeiro, minha querida. Não és menos filha por cuidares de ti.
Naquela noite tomei uma decisão. Esperei que o Rui chegasse e sentei-me com ele à mesa da cozinha.
— Vou falar com o pai amanhã. Vou dizer-lhe que tem de começar a contribuir ou procurar outro sítio para viver.
O Rui abraçou-me em silêncio. Pela primeira vez em meses senti-me menos sozinha.
No dia seguinte preparei o pequeno-almoço como sempre e sentei-me à frente do meu pai.
— Pai, precisamos mesmo de conversar. Eu amo-te muito, mas isto não pode continuar assim. Preciso que ajudes em casa ou então temos de pensar noutra solução…
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se devagar e foi buscar um envelope ao quarto.
— Toma — disse-me, empurrando-o para mim. — É o dinheiro das minhas poupanças. Não é muito, mas pode ajudar nas despesas.
Fiquei sem palavras. Nunca imaginei que ele tivesse guardado dinheiro sem me dizer nada.
— Porque nunca me disseste?
Ele olhou para mim com olhos cansados. — Tinha vergonha… Sempre fui eu a sustentar esta família. Agora dependo de ti e isso custa-me mais do que imaginas.
Chorámos os dois naquela manhã. Pela primeira vez em muito tempo senti que podíamos reconstruir alguma coisa dos escombros da nossa relação.
Hoje as coisas ainda não são perfeitas. O meu pai continua difícil, mas tenta ajudar mais em casa. Eu aprendi a impor limites e a pedir ajuda quando preciso.
Às vezes pergunto-me: até onde vai o nosso dever para com quem amamos? E quando é que cuidar se transforma em prisão? Será que alguém aí já sentiu este peso também?