Ainda sou eu ou apenas a sombra de alguém?
— Inês, já viste as horas? O Miguel ainda não tomou o pequeno-almoço! — A voz da Dona Teresa ecoou pelo corredor, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Senti o coração apertar-se no peito. Ainda mal tinha aberto os olhos e já sentia o peso do dia a esmagar-me.
Levantei-me devagar, tentando não fazer barulho. O Miguel dormia profundamente ao meu lado, alheio ao mundo e, sobretudo, à mãe que comandava cada detalhe da nossa vida. Olhei para ele — tão sereno, tão bonito — e perguntei-me, pela milésima vez, como é que alguém tão doce podia ser tão dependente.
Na cozinha, Dona Teresa já estava de avental posto, a mexer no café como se fosse ela a dona da casa. — Inês, querida, o Miguel gosta das torradas bem passadas. E não te esqueças do sumo de laranja, faz-lhe bem à saúde. — Sorri-lhe, mas por dentro fervia. Tinha 28 anos e sentia-me uma adolescente a viver em casa dos pais do namorado.
— Bom dia, mãe. Bom dia, Inês — disse o Miguel, entrando na cozinha com um sorriso sonolento. Sentou-se à mesa e pegou no telemóvel. Nem um olhar para mim. Nem um “obrigado” quando lhe pus o prato à frente.
O silêncio instalou-se entre nós. Dona Teresa olhava-me de soslaio, como quem avalia se estou à altura da tarefa de cuidar do seu menino. Eu tentava engolir a raiva com o café amargo.
Mais tarde, enquanto arrumava a loiça, ouvi-as na sala:
— Não sei se a Inês é a rapariga certa para ti, Miguel. Ela parece distraída, não repara nos detalhes… — sussurrava Dona Teresa.
— Mãe, por favor… — respondeu ele, mas sem convicção.
Aquela frase ficou-me cravada na memória. Não era a primeira vez que ouvia insinuações destas. Desde que me mudei para casa deles — “só por uns meses”, dizia o Miguel — que sentia que nunca seria suficiente.
Os dias passavam entre pequenas humilhações e grandes silêncios. Se eu chegava tarde do trabalho, Dona Teresa fazia questão de comentar:
— O jantar já está frio… O Miguel ficou à tua espera.
Se eu queria sair com as minhas amigas:
— Não achas que devias ficar com o Miguel? Ele sente-se sozinho…
E o Miguel? Limitava-se a encolher os ombros e a dizer:
— Sabes como é a minha mãe… Não ligues.
Mas eu ligava. Ligava tanto que comecei a perder-me de mim mesma. Deixei de ir ao ginásio porque ela achava “um desperdício de tempo”. Deixei de pintar porque “a casa já tem tralha suficiente”. Até deixei de usar batom vermelho porque “não fica bem numa rapariga séria”.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia pôr a mesa, explodi:
— Miguel, até quando vais deixar que a tua mãe decida tudo por ti? E por nós?
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha.
— Não compliques, Inês. Ela só quer ajudar.
— Ajudar? Ela controla-te! Controla-nos! Não vês?
Ele levantou-se e saiu para o quarto sem dizer palavra. Fiquei sozinha na sala, com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
No dia seguinte, Dona Teresa fez questão de me ignorar. O Miguel passou o dia fechado no quarto. Senti-me invisível dentro daquela casa que nunca foi minha.
Comecei a pensar em sair. Falei com a minha mãe ao telefone:
— Filha, tu não és criada de ninguém. Se ele não te defende agora, nunca vai defender.
Mas eu amava-o. Ou achava que amava. Lembrava-me dos primeiros meses juntos: passeios à beira-rio, risos cúmplices, sonhos partilhados. Onde é que tudo isso tinha ido parar?
Uma tarde, cheguei mais cedo do trabalho e ouvi-os na cozinha:
— Mãe, talvez devêssemos dar espaço à Inês…
— Espaço? Ela é que devia adaptar-se! Tu mereces alguém que cuide de ti como eu sempre cuidei!
Senti um nó na garganta. Fui para o quarto e comecei a arrumar as minhas coisas em silêncio. Quando o Miguel entrou e me viu com a mala aberta, ficou pálido.
— Vais embora?
— Vou. Preciso de me encontrar outra vez. Preciso de respirar sem pedir licença.
Ele tentou abraçar-me, mas afastei-o.
— Amo-te, Miguel. Mas não posso amar-te mais do que me amo a mim mesma.
Saí daquela casa com o coração em pedaços e as mãos a tremer. Fui para casa da minha mãe e chorei durante dias. Mas aos poucos fui recuperando quem era: voltei ao ginásio, pintei quadros novos, saí com amigas antigas.
O Miguel mandou mensagens durante semanas:
— Sinto tua falta.
— A minha mãe sente tua falta também.
Mas nunca disse: “Quero construir uma vida contigo, só nós dois”.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em relações onde não há espaço para serem elas próprias? Quantas sacrificam sonhos pelo conforto da rotina?
E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre o amor e a vossa liberdade?