Fins de Semana Roubados: O Preço de Ser Sempre a Casa de Todos

— Outra vez, Margarida? Vais mesmo deixar que a Sílvia venha cá este fim de semana com os miúdos? — perguntei, já sem conseguir esconder a exasperação na voz.

Ela olhou-me, cansada, os olhos fundos e as mãos a tremerem ligeiramente enquanto mexia no chá. — Teresa, o que é que queres que faça? Ela não tem para onde ir. O Pedro trabalha ao sábado, ela sente-se sozinha…

Suspirei. Já ouvira aquela justificação vezes sem conta. Mas naquele dia, havia algo diferente no olhar da minha amiga. Uma sombra mais escura, talvez um cansaço que já não se disfarçava com sorrisos ou frases feitas.

Conheço a Margarida desde que éramos miúdas em Setúbal. Sempre foi generosa, sempre pronta a ajudar. Quando casou com o António, já ele tinha uma filha do primeiro casamento, a Sílvia. No início, tudo parecia correr bem. Mas depois vieram os netos, vieram as separações, vieram as dificuldades da vida. E a casa da Margarida tornou-se refúgio, pousada, parque infantil e confessionário.

— Mas e tu? — insisti. — Quando é que pensas em ti?

Ela encolheu os ombros. — Não sei. Sinto-me egoísta só de pensar nisso.

Naquela sexta-feira, fui eu quem ficou para jantar. O António chegou tarde, como sempre, cansado do trabalho na Câmara Municipal. Mal entrou, ouviu-se logo o tilintar das chaves da Sílvia na porta.

— Olááá! — gritou ela, arrastando dois sacos cheios de brinquedos e dois miúdos aos saltos.

O António sorriu, mas Margarida ficou tensa. Vi-lhe o maxilar a endurecer.

— Mãe, desculpa vir assim em cima da hora… O Diogo está com tosse e eu não queria ficar sozinha em casa — disse Sílvia, largando tudo no corredor.

O Diogo começou logo a correr pela sala, a irmã Leonor atirou-se para o sofá com as botas cheias de lama. Margarida foi buscar panos para limpar o chão, enquanto Sílvia se sentava à mesa como se nada fosse.

— Preciso mesmo de descansar um bocadinho — suspirou ela. — Estes miúdos dão cabo de mim.

Olhei para Margarida. Ela limpava o chão em silêncio, os olhos húmidos. O António tentava animar o ambiente com piadas sobre futebol, mas ninguém lhe ligava.

No sábado de manhã, acordei cedo. Ouvi vozes na cozinha. A Sílvia reclamava porque o pão estava duro e Margarida pedia desculpa por não ter ido à padaria.

— Mãe, tens de perceber que eu preciso mesmo deste apoio — dizia Sílvia num tom quase acusatório. — O Pedro nunca está em casa! Se não fosse por ti…

Margarida calou-se. Vi-lhe as mãos a tremerem enquanto preparava o leite com chocolate para os netos.

Ao almoço, tentei puxar conversa:

— Margarida, já pensaste em tirar uns dias só para ti? Ir até ao Algarve, visitar a tua irmã…

A Sílvia interrompeu logo:

— E quem ficava com os miúdos? Eu não posso faltar ao trabalho!

O António olhou para mim, desconfortável. Percebi que ele também sentia o peso daquela rotina, mas não tinha coragem de contrariar a filha.

À tarde, levei Margarida ao jardim enquanto as crianças viam desenhos animados.

— Não aguento mais — confessou ela baixinho. — Sinto-me uma empregada na minha própria casa. Já nem sei quem sou…

— Tens de falar com o António — sugeri. — Isto não pode continuar assim.

Ela abanou a cabeça.

— Ele acha que estou a exagerar. Diz que é só uma fase… Mas esta fase já dura há anos!

No domingo à noite, quando finalmente a Sílvia foi embora com os filhos, Margarida sentou-se no sofá e chorou baixinho. Fiquei ao lado dela em silêncio.

Na segunda-feira seguinte, liguei-lhe logo de manhã.

— Dormiste?

— Um pouco… Mas já estou ansiosa pelo próximo fim de semana. Sei que vai ser igual.

Durante semanas tentei convencê-la a impor limites. Falei-lhe da importância do autocuidado, da necessidade de dizer “não” sem culpa. Mas Margarida parecia presa numa teia invisível feita de obrigações familiares e medo de magoar quem amava.

Um dia, durante um jantar mais tenso do que o habitual, tudo explodiu.

A Sílvia chegou irritada porque o Pedro não podia ir buscar os filhos no domingo à noite.

— Mãe, vais ter de ficar com eles até segunda! Eu tenho uma reunião cedo e não posso faltar!

Margarida olhou para ela como se finalmente visse algo que sempre esteve ali mas nunca quis admitir.

— Sílvia… Eu não posso continuar assim. Preciso do meu espaço. Preciso descansar também.

A sala ficou em silêncio. O António tentou intervir:

— Vá lá, Margarida… Não compliques…

Mas ela levantou-se da mesa.

— Não compliques? António, eu já não sou eu nesta casa! Sinto-me invisível! Só sirvo para limpar desastres e ouvir lamentos!

A Sílvia ficou vermelha.

— Se é assim que te sentes… Talvez seja melhor eu não vir mais!

Margarida chorou nesse dia como nunca a vi chorar. Mas também foi nesse dia que começou a mudar alguma coisa.

Nas semanas seguintes, impôs regras: só aceitava visitas combinadas com antecedência; cada um era responsável pelos seus filhos; e aos domingos à tarde precisava do seu tempo sozinha.

O António resistiu no início, mas acabou por perceber que estava a perder a mulher para uma tristeza sem nome.

A Sílvia afastou-se durante algum tempo. Houve silêncios pesados ao telefone e olhares frios nos almoços de família. Mas aos poucos foi percebendo que também ela precisava aprender a ser mãe sem depender tanto da avó dos seus filhos.

Hoje, quando vou a casa da Margarida ao fim de semana, encontro-a sentada na varanda com um livro ou a cuidar das flores do quintal. Os netos vêm menos vezes, mas quando vêm é uma festa verdadeira — sem ressentimentos nem lágrimas escondidas.

Às vezes pergunto-me se valeu a pena tanto sofrimento para chegar aqui. E Margarida diz-me:

— Teresa… Porque será que é tão difícil dizer “não” às pessoas que amamos? Será egoísmo ou simplesmente amor-próprio?

E vocês? Já sentiram que estavam a perder-se para agradar aos outros? Como encontraram o vosso equilíbrio?