Entre Silêncios e Gritos: A Minha Vida com Tomás
— Não percebo, Ricardo! Porque é que te metes nisto? Não tens já problemas suficientes? — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, carregada de preocupação e incredulidade. Eu olhava para ela, tentando encontrar as palavras certas, mas tudo o que sentia era um nó na garganta.
— Mãe, o Tomás precisa de alguém. E eu… eu preciso dele também. — A minha voz saiu trémula, quase um sussurro. O silêncio caiu pesado entre nós, interrompido apenas pelo som do relógio antigo na parede.
Nunca pensei que a minha vida tomasse este rumo. Cresci em Almada, numa família tradicional, onde se falava pouco sobre sentimentos e ainda menos sobre diferenças. Quando assumi a minha homossexualidade aos 25 anos, foi como se tivesse lançado uma bomba no seio familiar. O meu pai deixou de falar comigo durante meses. A minha mãe chorava baixinho à noite, pensando que eu não ouvia. Mas sobrevivi. Fiz-me homem à minha maneira, com as minhas dores e as minhas pequenas vitórias.
Aos 38 anos, depois de uma relação falhada e de muitos silêncios partilhados com o meu cão Tobias, senti um vazio impossível de preencher. Foi então que conheci o Tomás. Tinha sete anos e um olhar perdido, como se já tivesse visto demasiado do mundo. Disseram-me logo: “É autista, já passou por três famílias. Não fala muito. Dá trabalho.” Mas quando me sentei ao lado dele no lar de acolhimento, ele estendeu-me um carrinho de brincar. Não disse nada, mas naquele gesto vi tudo: medo, esperança, vontade de confiar.
A decisão de adotar o Tomás foi rápida para mim, mas lenta para o mundo. Os assistentes sociais olhavam-me com desconfiança — um homem solteiro, homossexual, a querer adotar uma criança “difícil”? Tive de provar vezes sem conta que era capaz. Passei por entrevistas intermináveis, avaliações psicológicas, visitas domiciliárias onde cada canto da minha casa era escrutinado.
Quando finalmente o trouxe para casa, senti-me o homem mais feliz do mundo — e o mais assustado também. Na primeira noite, Tomás não quis dormir no quarto dele. Sentou-se no chão da sala com o carrinho na mão e ficou ali até adormecer. Eu sentei-me ao lado dele e chorei baixinho, sem saber se estava à altura do desafio.
Os dias seguintes foram uma montanha-russa. Tomás tinha crises de ansiedade sempre que havia barulho ou mudanças na rotina. Uma vez, durante um jantar de família, a minha irmã Ana tentou abraçá-lo e ele gritou tão alto que todos ficaram em choque. O meu cunhado murmurou: “Isto não é vida para ninguém…” Senti-me sozinho no meio da multidão.
A escola foi outro campo de batalha. Os outros pais olhavam para mim com pena ou desconfiança. Uma mãe chegou a perguntar-me se não tinha medo que o Tomás “nunca fosse normal”. Respirei fundo e respondi: — O Tomás é normal à maneira dele. E eu orgulho-me disso.
Em casa, aprendi a decifrar os silêncios do meu filho. Descobri que ele adorava puzzles e que sorria quando ouvia música dos Xutos & Pontapés. Começámos a criar rotinas: pequeno-almoço às oito, passeio ao parque às dez, histórias antes de dormir. Aos poucos, ele começou a confiar em mim.
Mas nem tudo eram vitórias. Houve noites em que Tomás chorava sem razão aparente e eu sentia-me impotente. Houve dias em que me questionei se estava a fazer tudo errado. A minha mãe continuava a ligar todos os dias:
— Ricardo, tens a certeza? Não queres desistir?
— Não posso desistir dele como tantos outros já fizeram — respondia eu, tentando esconder as lágrimas.
Um dia, depois de uma crise particularmente difícil na escola, fui chamado à diretora. Sentei-me à frente dela, com as mãos suadas.
— Sr. Ricardo, talvez fosse melhor procurar uma escola especial…
— O Tomás tem direito a estar aqui como qualquer outra criança — respondi, sentindo a raiva crescer dentro de mim.
Saí da escola com o Tomás pela mão e prometi-lhe em silêncio que nunca o deixaria sozinho.
O tempo passou e as pequenas conquistas começaram a surgir: um sorriso inesperado ao pequeno-almoço; um “obrigado” murmurado antes de dormir; uma pintura colorida oferecida no Dia do Pai. Cada gesto era uma vitória contra o mundo que dizia que não éramos suficientes.
A família foi-se adaptando devagarinho. A minha mãe começou a trazer bolos para o Tomás e a perguntar-lhe sobre os carrinhos. A Ana ofereceu-lhe um puzzle gigante no Natal e ficou sentada com ele até terminarem juntos. Até o meu pai apareceu um dia com um sorriso tímido e disse:
— És corajoso, filho.
Hoje olho para trás e vejo o quanto crescemos juntos. O Tomás ensinou-me a ser paciente, a ouvir sem julgar e a amar sem condições. Ainda temos dias difíceis — há silêncios pesados e gritos inesperados — mas há também abraços apertados e risos partilhados.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias desistem antes de tentar? Quantas crianças ficam à espera de alguém que as veja como realmente são? Talvez nunca encontre todas as respostas, mas sei que não trocaria esta vida por nada.
E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre o medo do desconhecido e a possibilidade de amar sem limites?