Grito na Viela: A Noite que Mudou Tudo

— Não vás, Miguel! — ouvi a voz da minha mãe, trémula, ecoar pelo corredor enquanto eu calçava à pressa os ténis molhados. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e a chuva batia com força nos vidros do nosso pequeno apartamento em Alfama. Mas aquele grito — aquele grito vindo da viela ao lado — não me saía da cabeça.

“E se fosse comigo? E se fosse a minha irmã, a Mariana?” pensei, sentindo o coração bater tão forte que quase abafava o som da tempestade. Saí porta fora, ignorando os protestos da minha mãe e o olhar assustado do meu pai, que se limitou a murmurar: — Deixa-o ir. Talvez assim aprenda.

A viela estava deserta, exceto por uma figura caída junto ao muro coberto de graffiti. Aproximei-me devagar, as mãos a tremer. — Está tudo bem? — perguntei, a voz falhando.

A rapariga levantou o rosto, sujo de lágrimas e sangue. — Ajuda-me… por favor…

Sem pensar, ajoelhei-me ao lado dela. O cheiro a chuva misturava-se com o do medo. — Quem te fez isto? — insisti, mas ela só abanava a cabeça, os olhos arregalados.

Foi aí que ouvi passos atrás de mim. Virei-me de rompante e deparei-me com o Rui, o meu primo mais velho, o orgulho da família, sempre vestido de preto e com aquele olhar frio. — O que fazes aqui, Miguel? Isto não é para ti.

O choque foi como um murro no estômago. — Rui? Conheces esta rapariga?

Ele sorriu de lado, um sorriso que nunca lhe tinha visto antes. — Vai para casa. Isto não te diz respeito.

Mas já era tarde demais. O sangue na cara da rapariga, o medo nos olhos dela… tudo gritava que havia ali algo muito errado. — Não vou a lado nenhum até saber o que se passa!

O Rui aproximou-se, ameaçador. — Não te metas onde não és chamado. Há coisas que não percebes.

— Então explica-me! — gritei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Explica-me porque é que estás aqui no meio da noite com uma rapariga ferida!

Ele olhou para mim durante um longo momento, depois virou costas e desapareceu na chuva.

Ajudei a rapariga a levantar-se e levei-a para casa. A minha mãe ficou branca como a cal ao vê-la, mas não disse nada. O meu pai fechou a porta à chave e ficou a olhar para mim como se eu tivesse acabado de trazer uma bomba para dentro de casa.

— Quem és tu? — perguntou ele à rapariga.

Ela hesitou antes de responder. — Chamo-me Sofia… Sofia Cardoso.

O nome pareceu acender algo nos olhos do meu pai. — Cardoso? És filha do António Cardoso?

Ela assentiu devagar. O silêncio caiu pesado sobre nós.

— O António Cardoso é dono de metade dos bares desta zona — murmurou o meu pai. — E tem contas antigas com a nossa família…

A minha mãe puxou-me para o lado e sussurrou: — O teu tio foi preso por causa dele, Miguel. Não te metas nisto.

Mas eu já estava metido até ao pescoço.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentado à mesa da cozinha a ouvir a chuva e os sussurros dos meus pais na sala. Sofia dormia no sofá, encolhida como um animal ferido.

De manhã, quando acordei, ela já estava acordada, a olhar pela janela como se procurasse uma saída para um labirinto sem fim.

— Obrigada por ontem — disse ela baixinho quando me aproximei.

— Quem te fez aquilo?

Ela hesitou antes de responder: — Foi o Rui… mas ele só estava a obedecer ordens do meu pai.

Senti o chão fugir-me dos pés. O Rui? O meu primo? A fazer aquilo por ordens do António Cardoso?

— Porquê?

Ela olhou-me nos olhos, desesperada: — Porque eu descobri coisas… coisas que eles não querem que ninguém saiba.

O medo dela era tão real que me gelou o sangue. — Que coisas?

Ela baixou a voz até quase ser um sussurro: — O teu primo e o meu pai andam metidos em negócios sujos… tráfico, ameaças… E eu ouvi uma conversa que não devia.

O peso daquela revelação caiu sobre mim como uma avalanche. De repente tudo fazia sentido: os olhares trocados nos jantares de família, as conversas interrompidas quando eu entrava na sala, o dinheiro que aparecia do nada nas mãos do Rui.

— Tens de ir à polícia! — disse eu, mas ela abanou a cabeça.

— Eles têm pessoas em todo o lado… Se eu falar, nunca mais volto a ver a luz do dia.

Nesse momento ouviu-se uma pancada forte na porta. O meu pai correu para abrir antes que eu pudesse reagir. Era o Rui, com dois homens atrás dele.

— Vim buscar a Sofia — disse ele friamente.

A minha mãe pôs-se à frente da rapariga. — Aqui ninguém leva ninguém!

O Rui olhou para mim com desprezo. — Achas mesmo que podes proteger alguém nesta família?

O meu pai tentou acalmar os ânimos: — Rui, vai-te embora antes que isto corra mal para todos nós.

Mas ele não se mexeu. Os homens atrás dele começaram a avançar pela casa dentro.

Foi aí que tudo explodiu: gritos, empurrões, vidros partidos. No meio da confusão consegui agarrar na mão da Sofia e fugir pela porta das traseiras.

Corremos pelas ruas molhadas até perdermos o fôlego. Escondemo-nos numa garagem abandonada perto do Tejo. Ela chorava baixinho e eu sentia-me impotente como nunca antes na vida.

— Não podemos voltar para casa… nem tu nem eu — disse-lhe finalmente.

Ela assentiu em silêncio.

Passámos dois dias escondidos, alimentando-nos de sandes frias e café comprado às escondidas numa pastelaria onde ninguém nos conhecia. Eu tentava pensar num plano mas tudo me parecia impossível: denunciar o Rui e o António Cardoso era assinar a nossa sentença de morte; fugir para fora do país era impensável sem dinheiro ou documentos.

Na terceira noite, enquanto Sofia dormia encostada ao meu ombro, recebi uma mensagem anónima no telemóvel: “Se queres salvar a tua família, entrega a Sofia.”

Fiquei horas a olhar para aquelas palavras brilhando no ecrã escuro. Entregar Sofia seria condená-la… mas protegê-la podia destruir tudo o que restava da minha família.

No dia seguinte tomei uma decisão: fui ter com o inspetor Duarte, amigo antigo do meu pai e único polícia em quem confiava desde miúdo. Contei-lhe tudo: sobre o Rui, sobre o António Cardoso, sobre as ameaças e os negócios sujos.

Ele ouviu-me em silêncio e depois disse apenas: — Fizeste bem em vir ter comigo. Mas agora tens de desaparecer durante uns tempos…

Com ajuda dele conseguimos esconder-nos num local seguro até que as investigações avançaram e as provas recolhidas pela Sofia foram suficientes para prenderem tanto o António Cardoso como o Rui.

Quando tudo acabou, voltei a casa com um peso novo nos ombros e uma família despedaçada pelo medo e pela vergonha. O meu pai nunca mais falou do assunto; a minha mãe envelheceu dez anos em poucos meses; e eu… eu deixei de ser aquele rapaz ingénuo que achava que podia salvar toda a gente só com coragem.

Às vezes ainda acordo sobressaltado com ecos daquele grito na viela molhada de Lisboa. Pergunto-me se teria feito diferente se soubesse tudo o que sei agora…

Será que vale sempre a pena enfrentar os nossos próprios demónios? Ou há segredos que deviam mesmo ficar enterrados para sempre?