Tudo Pelas Nossas Filhas: Merecemos Esta Ingratidão?

— Não percebes, mãe? Eu tenho a minha vida! — gritou a Mariana, batendo com a porta do quarto.

Fiquei ali, parada no corredor, com o coração a bater tão forte que quase me doía no peito. Oiço ainda o eco daquelas palavras, como se cada sílaba fosse uma faca a cortar-me por dentro. Olhei para o retrato antigo na parede: eu, o António e as nossas duas meninas, ainda pequenas, sorridentes, de mãos dadas no jardim da casa dos meus pais em Viseu. Como é que chegámos aqui?

Desde cedo aprendi que ser mãe era sinónimo de renúncia. O António trabalhava horas sem fim na fábrica de calçado, e eu fazia limpezas em casas alheias para ajudar nas contas. Nunca me queixei. Quando a Mariana nasceu, deixei de lado o sonho de estudar enfermagem. Depois veio a Inês, tão frágil, sempre doente nos primeiros anos. Lembro-me das noites em claro, do medo de a perder, do cansaço que me fazia chorar baixinho para não acordar ninguém.

— Teresa, tens de pensar em ti — dizia-me a minha irmã Ana, sempre tão prática. — As miúdas crescem e depois ficas sozinha.

Mas como podia pensar em mim? As meninas precisavam de mim. O António precisava de mim. A casa precisava de mim. E eu fui ficando para trás.

Os anos passaram num instante. A Mariana era rebelde desde pequena, sempre com resposta pronta. A Inês era mais doce, mas fechada no seu mundo. Fiz tudo para lhes dar o melhor: roupas lavadas, comida quente na mesa, apoio nos estudos. Quantas vezes fiquei acordada até tarde a coser fardas ou a preparar lanches para as visitas de estudo? Quantas vezes deixei de comprar um casaco novo para mim para que elas tivessem livros ou pudessem ir ao cinema com as amigas?

O António era um homem bom, mas pouco dado a conversas. Quando as discussões começaram — primeiro por causa das notas da Mariana, depois por causa das saídas à noite — ele limitava-se a suspirar e sair para fumar um cigarro à varanda.

— Deixa-as viver — dizia-me. — Nós também fomos jovens.

Mas eu só queria protegê-las. O mundo lá fora era duro. Eu sabia disso melhor do que ninguém.

A primeira grande mágoa veio quando a Mariana decidiu ir estudar para Lisboa. Não me pediu opinião; comunicou-me como se fosse uma decisão óbvia.

— Mãe, não vou ficar aqui presa nesta terra — disse ela, olhos brilhantes de desafio.

Chorei nessa noite como nunca tinha chorado antes. Senti que estava a perder uma parte de mim. O António tentou consolar-me, mas também ele ficou mais calado desde então.

A Inês ficou mais uns anos connosco, mas também ela acabou por sair para o Porto quando arranjou trabalho numa agência de publicidade. A casa ficou vazia, silenciosa demais. Os domingos tornaram-se longos e tristes.

No início ainda telefonavam com frequência. Depois as chamadas foram-se espaçando. “Desculpa mãe, tenho muito trabalho.” “Mãe, depois ligo.” “Mãe, não posso ir este fim-de-semana.” E assim passaram meses sem as ver.

O António adoeceu há dois anos. Um cancro no pulmão levou-o depressa demais. Fiquei sozinha naquela casa grande e fria. As filhas vieram ao funeral, claro. Choraram, abraçaram-me, mas no dia seguinte já estavam de volta às suas vidas agitadas nas cidades grandes.

Desde então, os dias arrastam-se num silêncio pesado. Tento ocupar-me: faço croché, trato do jardim, vou à missa ao domingo. Mas nada preenche o vazio que sinto cá dentro.

Há dias em que me revolto:

— Dei-vos tudo! — gritei uma vez ao telefone com a Mariana quando ela me disse que não podia vir ao Natal porque ia viajar com o namorado estrangeiro. — Tudo! E agora nem um telefonema?

Ela ficou em silêncio do outro lado.

— Mãe… tu não percebes… — murmurou antes de desligar.

A Inês é mais branda, mas também distante. Quando vem cá, está sempre agarrada ao telemóvel, responde por monossílabos e parece ansiosa por voltar à cidade.

— Mãe, tens de aceitar que temos as nossas vidas — diz ela.

Mas será pedir muito querer sentir-me amada? Querer um pouco da atenção que lhes dei durante tantos anos?

Às vezes dou por mim a invejar as vizinhas cujos filhos vêm todos os domingos almoçar em família. Sinto vergonha destes pensamentos mesquinhos, mas não consigo evitá-los.

Na última Páscoa tentei juntar toda a família. Preparei o cabrito como antigamente, pus a mesa com a toalha bordada pela minha mãe. A Mariana chegou atrasada e saiu cedo porque tinha um voo para Madrid no dia seguinte. A Inês nem apareceu: mandou mensagem a dizer que estava doente.

Depois do almoço fiquei sozinha na cozinha a lavar os pratos enquanto as lágrimas me caíam pela cara abaixo.

Lembro-me da minha mãe dizer:

— Os filhos são do mundo, Teresa.

Mas será mesmo assim? Será justo darmos tudo e ficarmos com nada? Será que falhei como mãe? Ou será que esta é apenas a ordem natural das coisas?

No outro dia encontrei uma carta antiga da Mariana onde me pedia desculpa por ter partido um vaso favorito meu quando era pequena. “Desculpa mãe, não queria magoar-te.” Guardei essa carta como um tesouro.

Hoje olho para trás e vejo uma vida cheia de amor e sacrifício. Mas também cheia de silêncios e mágoas não ditas. Talvez tenha sufocado demasiado as minhas filhas com o meu amor; talvez tenha esperado delas aquilo que nunca me poderiam dar.

E agora pergunto-me: será que valeu a pena? Será que alguma vez vão perceber tudo o que fiz por elas? Ou será este o destino de todas as mães: amar sem esperar nada em troca?

Se pudesse voltar atrás faria tudo igual? Ou teria coragem de pensar mais em mim?

E vocês? Acham que os filhos devem tudo aos pais? Ou cada um deve seguir o seu caminho sem olhar para trás?