Entre Gritos e Silêncios: A Minha Vida à Sombra do Meu Pai
— Inês! Anda cá já! — O grito do meu pai ecoa pela casa, cortando o silêncio da noite como uma faca. O som faz-me estremecer, mesmo estando fechada no meu quarto, com os fones nos ouvidos e o caderno aberto à minha frente. Tento ignorar, mas o medo instala-se no peito. Sei que se não for, vai piorar.
Levanto-me devagar, cada passo pesado como chumbo. A minha mãe está na cozinha, de costas voltadas, a lavar a loiça com movimentos mecânicos. O meu irmão mais novo, o Tiago, esconde-se atrás do sofá com os olhos arregalados. Sinto-me sozinha, mesmo rodeada de gente.
— O que foi agora, pai? — pergunto, tentando manter a voz firme.
Ele está sentado à mesa, uma garrafa de vinho quase vazia à frente. Os olhos vermelhos, a cara cansada. — Porque é que nunca fazes nada direito? Nem um simples jantar consegues ajudar a tua mãe! — berra ele.
A minha mãe não diz nada. Aperta os lábios e continua a esfregar o mesmo prato há minutos. Eu olho para o chão. — Desculpa — murmuro.
Ele levanta-se de repente e sinto o cheiro forte do álcool. — Sempre a mesma coisa! Nesta casa ninguém me respeita! — bate com o punho na mesa e eu dou um salto.
Queria gritar-lhe tudo o que sinto: que tenho medo dele, que me dói vê-lo assim, que só queria um pai normal. Mas não digo nada. Engulo as palavras e volto para o quarto, onde escrevo tudo no meu diário. É ali que desabafo, onde posso ser sincera sem medo.
Na escola ninguém sabe disto. Sou a Inês que tira boas notas, que ajuda os colegas, que sorri nos corredores. Mas por dentro sinto-me partida. A professora de Português pediu-nos para escrever uma carta sobre a nossa vida. Hesitei, mas acabei por escrever sobre o meu pai — sem nomes, sem detalhes óbvios. Só sentimentos.
Dias depois, a professora chamou-me ao gabinete. — Inês, a tua carta tocou-me profundamente. Sabes que podes falar comigo se precisares? — disse ela com um olhar preocupado.
Sorri e disse que estava tudo bem. Mas não estava.
As noites em casa são todas iguais: discussões, portas a bater, lágrimas escondidas na almofada. O Tiago começa a ter pesadelos e acorda a chorar. A minha mãe está cada vez mais calada, como se tivesse desistido de lutar.
Um dia cheguei a casa e encontrei o meu pai desmaiado no sofá, com garrafas espalhadas pelo chão. Liguei para o 112 enquanto o Tiago gritava: — O pai vai morrer?
No hospital disseram-nos que ele tinha tido uma intoxicação alcoólica. A minha mãe chorou baixinho no corredor enquanto eu tentava acalmar o Tiago.
Quando o meu pai voltou para casa prometeu mudar. — Juro que nunca mais toco numa gota de álcool — disse ele com lágrimas nos olhos.
Durante duas semanas foi diferente: jantávamos juntos, ele ajudava o Tiago nos trabalhos de casa, até me perguntou como tinha corrido um teste de Matemática. Quase acreditei que tudo ia mudar.
Mas numa sexta-feira chegou tarde e bêbedo outra vez. A esperança desfez-se num instante. A minha mãe fechou-se no quarto e eu fiquei a olhar para ele, caído no chão da sala.
— Porque é que fazes isto? — perguntei-lhe baixinho.
Ele olhou para mim com uma tristeza profunda. — Não sei… Desculpa, filha.
Nesse momento percebi que não era só raiva que sentia por ele. Era pena também. E um vazio enorme.
Na escola comecei a afastar-me dos amigos. Não queria que soubessem da vergonha que sentia em casa. Uma vez ouvi duas colegas a falar:
— A Inês anda tão estranha ultimamente…
— Deve ser por causa dos testes.
Se ao menos soubessem…
A minha mãe começou a trabalhar mais horas para pagar as contas porque o meu pai perdeu o emprego. Eu tomava conta do Tiago e tentava manter as aparências. Mas por dentro sentia-me a afundar.
Uma noite ouvi a minha mãe ao telefone com a avó:
— Não aguento mais… Ele está a destruir-nos.
Pensei em fugir muitas vezes. Fantasiava com uma vida diferente: um quarto só meu, silêncio à noite, jantares tranquilos em família.
Mas depois olhava para o Tiago e sabia que não podia deixá-lo sozinho naquele caos.
No Natal desse ano não houve árvore nem presentes. O meu pai passou a noite no quarto dele e nós jantámos em silêncio na cozinha fria.
No dia seguinte escrevi outra carta — desta vez para mim própria:
“Querida Inês,
Não és culpada pelo que está a acontecer. Mereces ser feliz. Um dia vais sair daqui e construir uma vida melhor. Até lá, sê forte por ti e pelo Tiago.”
Guardei essa carta na gaveta da secretária e lia-a sempre que sentia vontade de desistir.
A professora de Português continuava a perguntar se estava tudo bem. Um dia não aguentei e contei-lhe tudo: as discussões, o medo, o cansaço.
Ela abraçou-me e disse: — Não tens de passar por isto sozinha. Há pessoas que te podem ajudar.
Com a ajuda dela comecei a ir ao psicólogo da escola. No início sentia vergonha, mas aos poucos comecei a perceber que não era fraca por pedir ajuda.
O meu pai continuou preso ao álcool durante muito tempo. Houve dias melhores e dias piores. Às vezes parecia querer lutar; outras vezes desistia completamente.
A minha mãe acabou por pedir o divórcio quando fiz dezassete anos. Foi doloroso ver a família desmoronar-se ainda mais, mas também senti alívio por finalmente poder respirar sem medo em casa.
Hoje vivo com a minha mãe e o Tiago num pequeno apartamento em Benfica. O meu pai está numa clínica de reabilitação em Setúbal. Às vezes liga-nos; outras vezes desaparece durante semanas.
Ainda sinto saudades do pai que tive em criança — aquele que me levava ao Jardim da Estrela e me ensinava a andar de bicicleta. Mas aprendi que não posso salvá-lo sozinha.
Escrevo esta história porque sei que há muitas Inês espalhadas por Portugal: raparigas (e rapazes) que vivem à sombra do álcool e do silêncio das famílias destruídas.
Será que algum dia vamos conseguir perdoar quem nos magoou tanto? Ou será que só aprendemos a viver com as cicatrizes?