“Vem buscar a tua filha!” — O dia em que tudo ameaçou ruir
— Vem buscar a tua filha! — gritou a voz da minha sogra do outro lado da linha, tão alta que tive de afastar o telemóvel do ouvido. O coração disparou-me no peito, as mãos começaram a tremer. Olhei para o relógio: eram quase sete da tarde, e eu ainda estava presa no trânsito da Avenida da República, com o céu de Lisboa a escurecer depressa demais para o meu gosto.
A minha filha, Leonor, tinha apenas oito anos, mas já era motivo de discórdia entre mim e a família do meu marido. Desde que o António morreu — há três anos, num acidente de mota que ainda hoje me rouba o sono — tudo ficou mais difícil. A sogra, Dona Amélia, nunca me perdoou por ter sobrevivido ao filho dela. E agora, sempre que podia, fazia questão de me lembrar disso.
— Dona Amélia, o que aconteceu? — tentei manter a voz firme, mas soou mais como um sussurro desesperado.
— Aconteceu que a Leonor não me respeita! Grita comigo, não quer jantar, diz que quer ir para casa! Isto não é maneira de uma criança se portar! — ouvi um soluço abafado do outro lado. — Se o António visse isto…
Fechei os olhos por um instante. O nome dele ainda era uma faca no meu peito. Respirei fundo e tentei não chorar ali mesmo, no carro.
— Eu já estou a caminho — disse, desligando antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa.
O trânsito parecia não andar. Olhei para os outros carros, para as pessoas apressadas nos passeios. Perguntei-me se alguma delas sentia o mesmo peso no peito, aquela sensação de estar sempre à beira de perder tudo.
Quando finalmente cheguei ao prédio antigo onde Dona Amélia morava, subi as escadas de dois em dois degraus. O cheiro a sopa de couve pairava no ar. Bati à porta e ouvi logo os gritos:
— Não quero ficar aqui! Quero a mãe! — era a voz da Leonor, embargada pelo choro.
A porta abriu-se com força. Dona Amélia estava vermelha, os olhos brilhantes de raiva e cansaço.
— Isto não pode continuar assim! — atirou ela, apontando-me o dedo. — Tu não sabes educar uma filha! Ela precisa de disciplina, de respeito!
Olhei para Leonor, sentada no sofá com os joelhos encolhidos ao peito. Corri para ela e abracei-a com força.
— Vamos para casa, meu amor — murmurei-lhe ao ouvido.
Dona Amélia não desistiu:
— Não penses que resolves tudo fugindo! O António nunca teria deixado isto acontecer!
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Tantas vezes ouvi aquela frase. Tantas vezes me culpei por tudo o que correu mal desde que ele partiu.
— Dona Amélia, por favor… — tentei apaziguar. — A Leonor está cansada. Amanhã falamos com calma.
Ela virou-me as costas e entrou na cozinha, batendo panelas como se quisesse partir tudo.
No caminho para casa, Leonor soluçava baixinho no banco de trás.
— Mãe… eu não gosto da avó — disse ela, com voz trémula.
Senti um nó na garganta. Como explicar-lhe que a avó também sofria? Que todos estávamos partidos desde aquele dia fatídico?
— A avó está triste, filha. Às vezes as pessoas dizem coisas feias quando estão magoadas…
Ela ficou em silêncio. Eu também. O rádio tocava uma música triste qualquer.
Em casa, preparei-lhe um banho quente e sentei-me ao lado da banheira enquanto ela brincava com os patinhos de borracha.
— Achas que o pai teria orgulho em mim? — perguntou ela de repente.
Fiquei sem palavras. Como responder àquela pergunta sem desabar?
— Claro que sim, querida. O pai amava-te mais do que tudo neste mundo.
Ela sorriu-me timidamente e eu senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
Depois de a deitar, sentei-me sozinha na sala escura. Peguei numa fotografia do António: ele sorria-me como se nada disto tivesse acontecido. Lembrei-me dos nossos sonhos: uma família feliz, férias no Algarve, tardes preguiçosas no sofá. Tudo tão longe agora.
O telefone tocou outra vez. Era a minha mãe.
— Filha… ouvi dizer que houve confusão com a tua sogra outra vez. Queres vir cá jantar amanhã?
A voz dela era um bálsamo. Mas também ela tinha opiniões fortes sobre como eu devia criar a Leonor.
— Obrigada, mãe… talvez vá sim.
Desliguei e fiquei ali sentada, perdida nos meus pensamentos. Senti-me sozinha como nunca antes. Entre duas famílias que pareciam puxar-me em direções opostas: uma exigia disciplina e tradição; outra pedia compreensão e modernidade.
No dia seguinte, fui chamada à escola da Leonor. A professora queria falar comigo.
— A Leonor anda distraída nas aulas — disse-me ela, com ar preocupado. — Parece triste… Está tudo bem em casa?
Senti o peso do mundo nos ombros.
— Estamos a passar uma fase difícil…
A professora assentiu com compreensão.
— Se precisar de ajuda… há psicólogos na escola. Não hesite em pedir apoio.
Saí dali com vontade de chorar outra vez. Senti-me uma mãe falhada. Será que estava mesmo a fazer tudo mal?
À noite, depois do jantar em casa da minha mãe (onde ouvi mais conselhos do que queria), sentei-me com Leonor na cama dela.
— Sabes… às vezes as famílias discutem porque se amam muito — disse-lhe eu. — Mas isso não quer dizer que deixem de gostar umas das outras.
Ela olhou-me nos olhos:
— Vais sempre estar comigo?
Abracei-a com força:
— Sempre, meu amor. Sempre.
Dias depois, Dona Amélia apareceu à porta sem avisar. Trazia um bolo de laranja nas mãos e os olhos inchados de tanto chorar.
— Posso falar contigo? — perguntou ela, hesitante.
Fomos até à cozinha enquanto Leonor via desenhos animados na sala.
— Eu só quero o melhor para a minha neta… — começou ela, com voz trémula. — Sinto tanto a falta do António… E às vezes descarrego em ti porque não sei lidar com esta dor…
Sentei-me à frente dela e pela primeira vez vi-a como alguém tão perdida quanto eu.
— Eu também sinto falta dele todos os dias… Mas precisamos de nos ajudar uma à outra. Pela Leonor.
Ela assentiu e chorámos as duas em silêncio durante longos minutos.
Naquela noite percebi: ninguém nos ensina a sobreviver à perda ou a reconstruir uma família feita de pedaços partidos. Mas talvez seja isso que significa amar: tentar todos os dias, mesmo quando parece impossível.
Agora pergunto-me: quantas famílias vivem presas nestes silêncios e mágoas? Quantos filhos crescem entre acusações e culpas? Será possível perdoar verdadeiramente e recomeçar? Gostava de ouvir as vossas histórias.