Os Pecados do Meu Pai: Verdades à Mesa de Domingo

— Inês, diz-me a verdade. A Leonor é mesmo minha filha?

O garfo caiu-me da mão, fazendo um barulho seco no prato de faiança. O cheiro do carvão ainda pairava no ar, misturado com o aroma das sardinhas assadas e do pão torrado. O sol de junho batia forte no quintal dos meus pais, mas naquele instante senti um frio a subir-me pela espinha. Todos à mesa — os meus pais, o meu irmão Miguel, a minha cunhada Sofia, até a pequena Leonor, com as mãos sujas de molho — ficaram em silêncio. Só se ouvia o zumbido das abelhas e o estalar da lenha na grelha.

Olhei para Rui, o meu marido há dez anos. Os olhos dele estavam vermelhos, cheios de mágoa e raiva. Nunca o tinha visto assim. Senti o coração apertar-se no peito, como se alguém me apertasse por dentro.

— Rui, por favor… — tentei começar, mas ele interrompeu-me.

— Não me mintas, Inês! Já chega de mentiras nesta família! — gritou ele, batendo com a mão na mesa. O copo de vinho tombou, tingindo a toalha branca de vermelho.

A minha mãe levantou-se num salto.

— Rui, por amor de Deus! Não é altura nem lugar para isto!

Mas ele não quis saber. Olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Há meses que ouço comentários. Que a Leonor não se parece comigo. Que tem os olhos do Miguel… — apontou para o meu irmão, que ficou lívido. — Quero saber a verdade agora!

O Miguel levantou-se também, nervoso.

— Rui, estás maluco? Que disparate é esse?

A Sofia puxou Leonor para junto dela, tentando protegê-la daquele espetáculo grotesco. A minha filha olhava para mim com os olhos grandes e assustados. Senti-me despida, exposta perante todos.

Por dentro, uma tempestade. O passado que sempre tentei enterrar vinha agora à tona, como um cadáver esquecido no fundo do rio Tejo.

Lembrei-me da noite em que tudo começou. Tinha vinte e cinco anos, era jovem e insegura. O Rui trabalhava noites no hospital, eu sentia-me sozinha naquela casa fria. O Miguel tinha acabado de regressar de Londres, depois de um divórcio complicado. Uma noite bebemos vinho demais e… aconteceu. Uma única vez. Um erro que jurei nunca repetir nem contar a ninguém.

Mas agora estava ali, encurralada entre o medo e a vergonha.

— Rui… — sussurrei, com lágrimas nos olhos — não sei o que te dizer…

Ele levantou-se de rompante.

— Então é verdade? Foste capaz? Com o teu próprio irmão?

A minha mãe tapou a boca com as mãos, chocada. O meu pai ficou imóvel, como uma estátua antiga.

— Inês… filha… diz-me que não — implorou ele.

O Miguel olhou para mim, desesperado.

— Inês, não digas nada! Isto não é altura…

Mas já não havia volta atrás. Senti que devia isso à Leonor, à minha família e até a mim própria.

— Foi só uma vez — confessei, a voz embargada. — Eu estava perdida… O Rui trabalhava tanto… Eu sentia-me sozinha… Mas nunca mais aconteceu! Nunca mais!

O silêncio foi absoluto. Só se ouviam os pássaros no limoeiro do quintal.

O Rui olhou para mim como se eu fosse feita de vidro partido.

— E agora? Como é que eu olho para a Leonor? Como é que eu olho para ti?

A minha mãe começou a chorar baixinho. O meu pai levantou-se devagar e saiu para o jardim sem dizer palavra.

O Miguel sentou-se de novo, com as mãos na cabeça.

A Sofia abraçou Leonor com força.

Senti-me sozinha como nunca antes na vida.

Naquela noite ninguém dormiu em casa dos meus pais. O Rui saiu sem dizer para onde ia. A minha mãe ficou fechada no quarto. O meu pai fumava cigarros atrás de cigarros no alpendre. Eu sentei-me no chão do quarto da infância e chorei até não ter mais lágrimas.

No dia seguinte, o Rui voltou para falar comigo. Estava pálido, com olheiras fundas.

— Preciso de tempo — disse ele apenas. — Não sei se consigo perdoar-te. Não sei se consigo olhar para a Leonor sem pensar nisto tudo.

Tentei agarrar-lhe as mãos, mas ele afastou-se.

— Eu amo-te, Rui… Amo-vos às duas…

Ele abanou a cabeça.

— O amor não chega sempre, Inês. Às vezes o amor não chega…

Durante semanas vivi num limbo. A família dividiu-se: uns achavam que eu devia sair de casa; outros diziam que o Rui tinha obrigação de perdoar pelo bem da Leonor. O Miguel afastou-se de todos; Sofia ameaçou deixá-lo se ele não contasse toda a verdade à filha deles também.

A Leonor começou a perguntar porque é que o pai já não vinha buscá-la à escola. Porque é que toda a gente chorava tanto em casa da avó.

Fizemos testes de ADN às escondidas. O resultado chegou numa manhã chuvosa: o Rui não era o pai biológico da Leonor.

Quando lhe entreguei o envelope, ele chorou como nunca tinha visto um homem chorar. Depois saiu porta fora e só voltou dias depois.

O tempo passou devagar. A dor foi dando lugar à aceitação. O Miguel pediu desculpa ao Rui; eu pedi desculpa à Sofia; todos pedimos desculpa à Leonor por lhe termos roubado uma infância tranquila.

Hoje vivemos todos com as cicatrizes desse verão fatídico. O Rui acabou por perdoar-me — ou pelo menos tentou. Ficámos juntos por amor à Leonor e porque nenhum de nós sabia viver sem o outro. Mas nunca mais fomos os mesmos.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: será possível reconstruir uma família depois de tanta mentira? Ou há feridas que nunca saram?

E vocês? Acham que o perdão é suficiente quando a confiança desaparece?