Entre Panelas e Silêncios: O Peso de Cozinhar Todos os Dias para o Meu Marido

— Outra vez arroz aquecido, Mariana? — A voz do Rui cortou o silêncio da cozinha, carregada de desdém. Senti o estômago apertar-se, as mãos trémulas a segurarem o prato. Era a terceira vez naquela semana que ele fazia aquele comentário. Olhei para ele, cansada, mas sem forças para responder. O cheiro do arroz de ontem ainda era agradável, mas para o Rui, parecia ser um insulto pessoal.

Desde que casámos, há sete anos, sempre tentei agradar-lhe. No início, era tudo novidade: cozinhava pratos diferentes todos os dias, experimentava receitas que via na televisão ou que a minha mãe me ensinava. Mas com dois filhos pequenos, um emprego a tempo inteiro e a casa para gerir, comecei a perceber que não era sustentável. As sobras passaram a ser uma solução prática, quase um alívio. Mas para o Rui, eram sinónimo de desleixo.

— Mariana, já te disse que não gosto de comida requentada. Não percebes? — insistiu ele, pousando o garfo com força na mesa.

— Rui, não tenho tempo para cozinhar todos os dias pratos diferentes… — tentei explicar, mas ele já tinha desviado o olhar para o telemóvel.

Aquela noite terminou em silêncio. Fui deitar-me sem jantar. Senti-me invisível, esmagada pelo peso das expectativas dele e pela minha própria culpa. Será que estava a falhar como mulher? Como mãe? Como dona de casa?

No dia seguinte, acordei antes do sol nascer. Fui à cozinha e comecei a preparar um novo prato: bacalhau à Brás, do zero. Enquanto cortava as batatas em palitos finos, ouvi os miúdos a discutirem no quarto ao lado. A Sofia queria vestir o vestido azul, mas estava por lavar. O Tomás chorava porque não encontrava o boneco preferido. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos — não por eles, mas por mim.

Quando finalmente pus o bacalhau na mesa ao jantar, Rui olhou para mim com um sorriso breve.

— Assim é que eu gosto. Comida feita na hora.

Engoli em seco. Os miúdos comeram em silêncio. Eu quase não toquei no prato.

As semanas passaram e a rotina tornou-se insuportável. Chegava a casa exausta do trabalho e ainda tinha de inventar algo novo para cozinhar. Os miúdos começaram a pedir para jantar em casa dos avós ao fim de semana — lá podiam repetir comida sem ouvir críticas.

Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na cozinha às escuras. Oiço os ponteiros do relógio e penso: “Será isto a minha vida?” Lembro-me da minha mãe dizer que casamento é compromisso, mas nunca me falou deste tipo de solidão.

No trabalho, comecei a chegar atrasada. A minha chefe chamou-me ao gabinete.

— Mariana, está tudo bem em casa?

Quase chorei ali mesmo. Disse-lhe que sim, que era só cansaço. Mas ela percebeu.

— Não se esqueça de cuidar de si também.

Naquela noite, tentei falar com o Rui.

— Rui, preciso que me ajudes mais em casa. Não consigo fazer tudo sozinha.

Ele encolheu os ombros.

— Mariana, eu trabalho tanto como tu. Só peço uma refeição decente ao jantar. Não é pedir muito.

Senti raiva. Pela primeira vez em anos, senti raiva dele. E de mim própria por ter deixado chegar a este ponto.

No fim de semana seguinte, levei os miúdos ao parque e sentei-me num banco ao sol. Vi outras mães a rir com os filhos, casais a partilhar sandes feitas em casa sem dramas. Senti inveja daquela simplicidade.

Quando voltámos para casa, decidi fazer uma experiência: cozinhei uma grande panela de sopa e deixei-a no frigorífico. No jantar, servi sopa do dia anterior.

Rui olhou para mim com desagrado.

— Outra vez comida velha?

Desta vez não me calei.

— Rui, chega! Não sou tua empregada. Se queres comida fresca todos os dias, aprende a cozinhar ou pede comida fora!

Ele ficou calado. Os miúdos olharam para mim assustados. Senti-me culpada por gritar à frente deles, mas também aliviada por finalmente dizer o que sentia.

Nessa noite dormimos costas voltadas. No dia seguinte, Rui saiu cedo e não me disse nada.

Durante semanas mal falámos. Ele começou a chegar mais tarde a casa e eu deixei de me preocupar tanto com os jantares. Às vezes fazia sandes ou aquecia restos para mim e para os miúdos.

Um dia, a Sofia perguntou:

— Mãe, porque é que o pai está sempre chateado?

Abracei-a com força e disse-lhe que às vezes os adultos também têm dificuldades em entender-se.

A minha sogra ligou-me:

— Mariana, ouvi dizer que andam com problemas lá em casa…

Expliquei-lhe tudo. Ela suspirou do outro lado da linha.

— O Rui sempre foi mimado com a comida… Eu devia ter-lhe ensinado melhor.

Senti um misto de alívio e tristeza. Afinal não era só culpa minha.

Com o tempo, comecei a cuidar mais de mim: voltei ao ginásio, saí com amigas antigas e até fiz um curso online de pastelaria — por prazer, não por obrigação.

Rui percebeu que algo tinha mudado. Uma noite chegou mais cedo e trouxe flores.

— Mariana… Desculpa. Acho que exagerei com as exigências. Podemos tentar encontrar um equilíbrio?

Olhei para ele durante longos segundos antes de responder.

— Podemos tentar… Mas desta vez tem de ser mesmo a dois.

Hoje em dia ainda discutimos sobre comida — velhos hábitos custam a morrer — mas já não carrego sozinha esse peso. Os miúdos ajudam na cozinha e até o Rui aprendeu a fazer massa à carbonara (com restos!).

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às expectativas dos outros sem nunca se ouvirem a si próprias? E vocês? Já sentiram este peso invisível dentro das vossas casas?