O Testamento Sem o Meu Nome: A Verdade Que Despedaçou a Minha Vida
— Não pode ser, doutor. O senhor deve estar enganado. — A minha voz tremia, quase inaudível, enquanto olhava para o advogado sentado à minha frente, os óculos pendendo na ponta do nariz, as mãos cruzadas sobre o testamento.
Ele suspirou, desviando o olhar para os papéis. — Dona Helena, eu compreendo o seu choque. Mas está tudo em conformidade com a lei. O seu marido deixou instruções claras.
O mundo pareceu encolher à minha volta. António, o homem com quem partilhei vinte e três anos de vida, pai dos meus dois filhos, estava morto há apenas uma semana. Ainda sentia o cheiro do seu perfume nos lençóis, ainda ouvia o ranger dos seus passos no soalho antigo da nossa casa em Sintra. E agora, perante mim, estava a confirmação de que tudo aquilo que julgava sólido era apenas uma ilusão.
O advogado continuou: — O apartamento, as contas bancárias, a quota na empresa… tudo foi deixado para uma senhora chamada Vera Martins.
Vera Martins. O nome ecoou na minha cabeça como um trovão. Nunca ouvira falar dela. Não era família, não era amiga. Quem era aquela mulher?
Saí do escritório atordoada, tropeçando nos próprios pés. O céu estava cinzento, ameaçando chuva. Senti-me pequena, ridícula, como se todos os olhares na rua soubessem do meu fracasso enquanto esposa. Peguei no telemóvel e liguei à minha irmã, Sofia.
— Helena? — atendeu ela, preocupada.
— Preciso de ti. Agora. — A minha voz saiu rouca, quase um sussurro.
Em casa dela, sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremerem enquanto contava tudo. Sofia ficou em silêncio durante longos minutos.
— Achas que ele tinha outra? — perguntou finalmente.
— Não sei… Não quero acreditar. — As lágrimas começaram a cair-me pelo rosto sem que eu conseguisse controlar.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de dor e raiva. Os meus filhos, Mariana e Tiago, estavam tão perdidos quanto eu. Mariana recusava-se a falar sobre o pai; Tiago trancava-se no quarto horas a fio. Eu tentava manter-me firme por eles, mas sentia-me a desmoronar por dentro.
Na semana seguinte, decidi procurar respostas. Fui à empresa onde António trabalhava há mais de vinte anos. O sócio dele, Manuel, recebeu-me com um abraço constrangido.
— Helena… sinto muito. Não fazia ideia…
— Quem é Vera Martins? — interrompi-o, sem rodeios.
Ele hesitou antes de responder:
— Era… uma colaboradora antiga. Saiu há uns anos. Não sabia que ainda tinham contacto.
A raiva cresceu dentro de mim como uma chama incontrolável. António nunca mencionara Vera. Nunca houve sinais — ou talvez eu nunca quis ver.
Voltei para casa e procurei nos papéis antigos de António. Faturas, cartas, extratos bancários… Até que encontrei um envelope escondido no fundo de uma gaveta do escritório. Dentro estava uma fotografia antiga: António sorria ao lado de uma mulher morena, bonita, talvez uns dez anos mais nova do que eu. No verso lia-se: “Para sempre tua, Vera”.
O chão fugiu-me dos pés. Sentei-me no chão do escritório e chorei até não ter mais lágrimas.
Naquela noite, tentei falar com Mariana:
— Filha… precisamos conversar sobre o teu pai.
Ela levantou os olhos do telemóvel, frios:
— Para quê? Para descobrir mais mentiras?
Fiquei sem palavras. Senti-me culpada por não ter visto nada disto antes, por não ter protegido os meus filhos desta dor.
Os dias passaram arrastados. Recebi uma carta registada: Vera queria reunir-se comigo para “esclarecer tudo”. Hesitei durante dias antes de responder. Mas precisava de respostas.
Encontrámo-nos num café discreto em Lisboa. Vera chegou pontual, elegante mas simples. Os olhos dela estavam vermelhos; percebi que também sofria.
— Helena… — começou ela — Não vim aqui para pedir desculpa. Sei que nada do que diga vai aliviar a sua dor.
Fiquei em silêncio; queria odiá-la mas só sentia vazio.
— Conheci o António há dez anos — continuou ela — No início éramos só colegas… depois amigos… e depois… — A voz dela falhou — Ele prometeu-me que um dia ia contar-lhe tudo.
— E nunca contou — respondi seca.
Ela abanou a cabeça:
— Ele tinha medo de vos magoar. E eu aceitei viver nas sombras porque o amava.
A raiva voltou a crescer dentro de mim:
— E achou justo aceitar tudo o que era meu? A casa dos meus filhos?
Vera baixou os olhos:
— Eu não pedi nada disto. Ele quis garantir que eu ficava bem… Disse que vocês estavam protegidos com a vossa família…
Saí dali ainda mais confusa e magoada do que antes.
Em casa, Tiago esperava-me na sala escura:
— Mãe… vamos ficar sem casa?
Sentei-me ao lado dele e abracei-o com força:
— Não sei, filho… Mas vamos ficar juntos. Isso é o mais importante.
Os meses seguintes foram uma luta constante com advogados e tribunais. Tentei impugnar o testamento mas tudo estava legalmente blindado. Tive de vender o carro e mudar-me para um apartamento mais pequeno com os meus filhos.
A família afastou-se; alguns primos diziam que eu devia ter visto os sinais; outros evitavam falar comigo por vergonha ou pena. Sofia foi a única que ficou sempre ao meu lado.
Houve noites em que pensei em desistir de tudo; outras em que me convenci de que era forte o suficiente para recomeçar. Mariana começou a sair com más companhias; Tiago tornou-se ainda mais fechado.
Um dia, ao arrumar caixas antigas no novo apartamento, encontrei um postal antigo do António para mim: “Helena, és a minha casa.” Chorei como nunca tinha chorado antes — pela perda do homem que pensei conhecer e pela vida que nunca voltaria a ser igual.
Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível viver tantos anos ao lado de alguém sem realmente o conhecer? Quantos segredos cabem num casamento? E será que algum dia vou conseguir perdoar — a ele e a mim mesma?