A Herança da Avó: Um Lar Cheio de Fendas

— Não é justo, mãe! — gritou o António, com a voz embargada, enquanto eu tentava segurar-lhe o braço, sentindo o meu coração bater tão forte que parecia querer saltar-me do peito. O cheiro a café frio misturava-se com o perfume doce da avó Maria, que ainda pairava na sala, mesmo depois de ela ter partido há dois meses. A mesa estava cheia de papéis, testamentos e olhares desconfiados.

A minha sogra, Dona Emília, sentada na cabeceira da mesa, olhava para nós com uma expressão dura, quase de pedra. O meu marido, Luís, estava calado, os olhos fixos no chão, como se quisesse desaparecer. O irmão mais novo, o Pedro, sorria de canto, com aquele ar de quem já sabia o desfecho há muito tempo.

— A casa é do Pedro. Foi o que a tua avó quis — disse Dona Emília, sem hesitar, a voz cortante como uma faca. — E não quero mais discussões sobre isto.

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Aquela casa em Sintra era mais do que paredes e telhado; era onde os meus filhos tinham dado os primeiros passos, onde passávamos os natais à volta da lareira, onde a avó Maria me ensinou a fazer arroz doce. Era o nosso lar.

— Mas mãe… — tentei argumentar, mas ela cortou-me logo:

— Tu não és da família de sangue. Não tens voto nesta matéria.

As palavras bateram-me como uma bofetada. Olhei para o Luís à espera de apoio, mas ele continuava calado. Senti-me sozinha, traída por todos.

Naquela noite, em casa, o silêncio era ensurdecedor. O Luís fumava no terraço, olhando para o vazio. Eu sentei-me na cama e chorei baixinho para não acordar os miúdos. O António entrou no quarto e sentou-se ao meu lado.

— Mãe, porque é que a avó fez isto? — perguntou ele, com os olhos vermelhos.

Não soube responder. Como explicar a injustiça? Como explicar que às vezes as pessoas que mais amamos nos magoam sem razão?

Os dias seguintes foram um tormento. O Pedro começou logo a fazer obras na casa. Mandou tirar os móveis antigos da avó Maria — nem sequer nos perguntou se queríamos ficar com alguma coisa. Vi o velho relógio de parede ser levado por estranhos, as fotografias de família atiradas para caixas de cartão.

O Luís afundou-se numa tristeza muda. Ia trabalhar cedo e chegava tarde. Os miúdos perguntavam quando podíamos voltar à casa da avó e eu não sabia o que dizer.

Uma tarde, cruzei-me com Dona Emília no supermercado. Ela fingiu que não me viu. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia ela apagar assim tantos anos de família?

Começaram as discussões em casa. O António revoltava-se:

— O pai devia ter defendido a nossa família! — gritava ele.

O Luís explodia:

— Não percebes que não posso fazer nada? A minha mãe sempre preferiu o Pedro!

Eu tentava manter a paz, mas sentia-me cada vez mais impotente. Os jantares eram em silêncio. Até a comida parecia perder o sabor.

Certa noite, depois de todos se deitarem, sentei-me sozinha na cozinha e escrevi uma carta à avó Maria. Escrevi tudo o que sentia: a dor, a saudade, a revolta. Perguntei-lhe porque tinha deixado que isto acontecesse. Chorei até adormecer com a cabeça em cima da mesa.

Os meses passaram e as feridas não saravam. O Pedro mudou-se para a casa nova com a namorada espanhola — a família agora era outra. Dona Emília ia lá todos os domingos almoçar; nós deixámos de ser convidados para as festas de anos e para o Natal.

O António começou a sair mais com os amigos e as notas baixaram. A Inês fechou-se no quarto e deixou de falar comigo sobre tudo e sobre nada como antes.

Um dia, ao arrumar umas caixas antigas no sótão do nosso apartamento pequeno demais para quatro pessoas e todas as suas mágoas, encontrei um álbum de fotografias da avó Maria. Folheei aquelas páginas devagar: lá estávamos todos juntos na praia da Figueira da Foz; o Luís ainda sorria; o Pedro era só um miúdo traquina; eu segurava o António bebé ao colo; Dona Emília ria-se ao fundo.

Senti uma pontada no peito. Quando foi que tudo se perdeu? Quando é que deixámos de ser família?

Decidi ligar ao Luís no trabalho.

— Luís… precisamos de falar — disse-lhe, tentando não chorar.

Ele chegou a casa mais cedo nesse dia. Sentámo-nos à mesa da cozinha como tantas vezes antes.

— Não aguento mais esta distância entre nós — disse-lhe baixinho.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Eu também não… mas não sei como mudar isto.

— Podemos começar por falar com os miúdos? Por tentar reconstruir alguma coisa?

Ele assentiu devagar. Nessa noite chamámos o António e a Inês à sala. Falámos sobre tudo: sobre a injustiça da herança, sobre as saudades da avó Maria, sobre como nos sentíamos todos perdidos.

O António chorou pela primeira vez desde o dia do testamento. A Inês abraçou-me com força.

— Não precisamos daquela casa para sermos família — disse ela baixinho.

As palavras dela ficaram-me gravadas no coração.

Começámos aos poucos a criar novas tradições: piqueniques no parque ao domingo; tardes de filmes em casa; jantares onde cada um cozinhava um prato diferente. Não era igual aos natais na casa da avó Maria, mas era nosso.

O Luís tentou falar com Dona Emília algumas vezes, mas ela manteve-se fria e distante. O Pedro nunca mais nos procurou.

Às vezes ainda sonho com aquela casa cheia de risos e cheiros familiares. Sinto falta do colo da avó Maria e das conversas à lareira nas noites frias de inverno.

Mas aprendi que as verdadeiras casas são feitas das pessoas que amamos — mesmo quando tudo à volta parece desmoronar-se.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que algum dia conseguimos perdoar quem nos magoa tanto? Ou será que certas fendas nunca se fecham completamente?

E vocês? Já sentiram que perderam uma casa… ou uma família?