“Não és suficientemente moderna, avó!” – O dia em que o meu coração se partiu

“Avó, não podes vir buscar-me à escola assim vestida, por favor!”

As palavras da Leonor ecoaram no corredor, tão frias e cortantes como uma manhã de janeiro em Lisboa. Eu estava parada à porta da sala, com o meu casaco de lã azul, o lenço de flores que a minha mãe me deu e os sapatos castanhos que uso há anos. O meu coração apertou-se. Tentei sorrir, mas a voz dela já tinha deixado uma marca.

“Mas, Leonor… O que é que tem o meu casaco?” perguntei, tentando disfarçar a dor.

Ela desviou o olhar, embaraçada. “Nada, avó. Só… As outras avós são diferentes. Usam ténis, têm cabelo pintado… Tu pareces… antiga.”

Fiquei ali parada, sem saber o que responder. Senti-me invisível, como se de repente tivesse deixado de ser a avó que ela adorava para ser apenas um embaraço. O caminho para casa foi silencioso. Cada passo pesava mais do que o anterior.

Quando chegámos ao prédio, Leonor subiu as escadas a correr. Eu fiquei para trás, sentindo-me velha pela primeira vez na vida. Sentei-me no sofá da sala e olhei para as fotografias na estante: Leonor bebé nos meus braços, Leonor a soprar as velas do bolo dos cinco anos, Leonor a rir-se comigo no parque. Onde é que tudo tinha mudado?

O meu filho, Ricardo, chegou pouco depois do trabalho. Percebeu logo que algo não estava bem.

“Mãe, aconteceu alguma coisa?”

Balancei a cabeça, sem coragem para lhe contar. Mas ele insistiu.

“Foi a Leonor… Disse-me que tem vergonha de mim. Que não sou uma avó moderna.”

Ricardo suspirou e sentou-se ao meu lado. “Mãe, sabes como são os miúdos hoje em dia… Ela está naquela fase difícil.”

“Mas eu sempre fui tudo para ela! Sempre estive aqui! Como é que agora sou um problema?”

Ele tentou consolar-me, mas as palavras dele não chegaram onde doía. Passei a noite em claro, a pensar em tudo o que fiz por aquela menina: as noites em que fiquei acordada quando ela estava doente, os passeios ao Jardim da Estrela, as histórias inventadas antes de dormir.

No dia seguinte, fui ao mercado como sempre. A dona Rosa percebeu logo que eu estava diferente.

“Então, Maria do Carmo? Está com ar triste.”

Contei-lhe o que se tinha passado. Ela abanou a cabeça.

“Os tempos mudaram muito. A minha neta também já me disse coisas dessas. Agora querem tudo moderno… Mas nós somos quem somos.”

As palavras dela confortaram-me um pouco, mas não consegui deixar de pensar no olhar da Leonor. Quando voltei para casa, decidi fazer uma coisa impensável: fui até ao quarto do Ricardo e procurei na internet ‘avós modernas’. Vi fotografias de senhoras com cabelo cor-de-rosa, roupas coloridas e ténis brancos. Senti-me ridícula só de imaginar.

Mas naquela noite, quando Leonor veio pedir ajuda com os trabalhos de casa, tentei puxar conversa.

“Leonor… Queres mostrar-me como é que as avós modernas se vestem?”

Ela olhou para mim surpreendida. “Queres mesmo saber?”

Assenti com a cabeça. Ela foi buscar o telemóvel e mostrou-me várias imagens no Instagram.

“Vês? Assim! E depois fazem vídeos engraçados… E vão a concertos!”

Senti-me ainda mais distante daquele mundo. Mas tentei sorrir.

“Talvez um dia possamos ir juntas a um concerto”, arrisquei.

Ela encolheu os ombros. “Talvez.”

Nos dias seguintes, comecei a reparar em tudo à minha volta: as mães à porta da escola com roupas modernas, os avós com mochilas às costas e ténis coloridos. Senti-me deslocada na minha própria cidade.

Uma tarde, decidi arriscar: fui à loja do bairro e comprei uns ténis brancos e uma camisola amarela. Quando cheguei a casa e vesti aquilo tudo à frente do espelho, quase não me reconheci. Mas quando Leonor chegou da escola e me viu assim, ficou boquiaberta.

“Avó! O que é isso?”

“Estou a tentar ser moderna”, disse-lhe, meio envergonhada.

Ela riu-se alto pela primeira vez em dias.

“Ficas gira! Mas não precisas de mudar por minha causa…”

Senti um alívio estranho misturado com tristeza. Afinal, todo aquele esforço era mesmo necessário?

Nessa noite, durante o jantar, Ricardo olhou para mim e sorriu.

“Estás diferente hoje.”

“Estou a tentar acompanhar os tempos”, respondi-lhe.

Ele riu-se e Leonor também. Pela primeira vez em muito tempo senti-me incluída na conversa deles.

Mas no dia seguinte tudo voltou ao mesmo: Leonor pediu-me para não ir buscá-la à escola porque ia sair com amigas. Fiquei sozinha em casa outra vez. Senti um vazio enorme — como se tivesse perdido o meu lugar na vida dela.

Passei dias assim: ora tentava adaptar-me ao mundo novo da Leonor, ora sentia saudades da nossa relação antiga. Um sábado à tarde ouvi-a chorar no quarto. Bati à porta devagarinho.

“Leonor? Posso entrar?”

Ela não respondeu. Entrei devagar e vi-a sentada na cama com o telemóvel na mão.

“O que se passa?”

Ela mostrou-me mensagens no telemóvel: colegas a gozar com ela porque tinha uma avó ‘antiga’ e ‘careta’.

Sentei-me ao lado dela e abracei-a.

“Sabes… Eu também já me senti diferente dos outros. Quando vim do Alentejo para Lisboa ninguém falava como eu… Sentia-me deslocada.”

Ela encostou-se ao meu ombro.

“Desculpa ter sido má contigo, avó.”

Ficámos ali abraçadas muito tempo. Pela primeira vez percebi que ela também sofria por querer encaixar num mundo que muda todos os dias.

No domingo seguinte levei-a ao Jardim da Estrela como fazíamos antes. Levámos pão para os patos e rimos das nossas memórias antigas.

No regresso a casa ela disse:

“Avó… Gosto de ti assim como és.”

Senti as lágrimas nos olhos. Talvez nunca venha a ser uma avó moderna como as outras — mas sou a avó da Leonor. E isso basta-me?

Será que temos mesmo de mudar quem somos para sermos aceites por quem mais amamos? Ou será que basta mostrarmos o nosso amor — mesmo quando o mundo parece querer outra coisa?