Sob o Mesmo Teto: A Batalha com a Sogra
— Mariana, já lhe disse mil vezes que não ponha os pratos assim! — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu estava ali, de avental posto, as mãos ainda húmidas do detergente, tentando encaixar os pratos no escorredor. O Rui, como sempre, fingia não ouvir, escondido atrás do jornal na sala.
Senti o sangue ferver-me nas veias. Não era a primeira vez que ela implicava comigo por coisas tão pequenas. Desde que casei com o Rui e viemos viver para esta casa antiga em Almada, nunca me senti verdadeiramente em casa. A Dona Lurdes fazia questão de me lembrar disso todos os dias, com os seus comentários passivo-agressivos e aquele olhar de quem avalia cada movimento meu.
— Desculpe, Dona Lurdes. Pensei que assim secavam melhor — respondi, tentando manter a voz calma.
Ela bufou, virou-me as costas e saiu da cozinha. Fiquei ali, sozinha, a olhar para os pratos. Senti uma lágrima ameaçar cair, mas engoli em seco. Não ia dar-lhe esse gosto.
O Rui entrou na cozinha pouco depois, com o jornal debaixo do braço.
— Outra vez a discutir? — perguntou ele, sem levantar muito os olhos.
— Não foi bem uma discussão… — comecei eu, mas ele já estava a servir-se de café, alheio ao meu desconforto.
— Mariana, sabes como a minha mãe é. Já tem uma certa idade… — disse ele, como se isso desculpasse tudo.
— Rui, eu faço tudo para agradar-lhe! Mas nada chega! — explodi finalmente, sentindo a voz tremer. — Não aguento mais esta tensão todos os dias!
Ele suspirou e pousou a chávena na mesa.
— Tens de ter paciência. Isto é só uma fase… — murmurou.
Mas eu sabia que não era só uma fase. Era a minha vida há três anos.
Lembro-me do dia em que nos mudámos para cá. O Rui tinha perdido o emprego na construção civil e eu trabalhava num supermercado. Não tínhamos dinheiro para alugar casa e a Dona Lurdes ofereceu-nos um quarto na casa dela. Achei que seria temporário. Mas o tempo foi passando e cada mês parecia mais difícil sair dali.
No início tentei agradar-lhe: fazia-lhe bolos ao domingo, ajudava nas limpezas, até lhe comprei um xaile pelo aniversário. Mas ela nunca sorriu verdadeiramente para mim. Sempre havia um comentário: “O bolo está seco”, “A casa não está bem limpa”, “O xaile é bonito mas faz-me calor”.
As coisas pioraram quando engravidei do nosso filho, o Tiago. Pensei que um neto a amoleceria. Mas foi o contrário. Começou a intrometer-se em tudo: “Não lhe dês sopa tão quente”, “O menino está mal vestido”, “No meu tempo não se fazia assim”.
Uma noite, depois de um dia especialmente difícil — Tiago tinha febre e eu estava exausta — ouvi-a dizer ao Rui:
— Esta rapariga não sabe cuidar de uma casa nem de um filho. Se ao menos tivesses casado com a Sónia…
A Sónia era a ex-namorada dele. Aquilo doeu mais do que qualquer discussão.
Confrontei o Rui nessa noite:
— Ouvi o que a tua mãe disse. E tu? Vais continuar calado?
Ele encolheu os ombros.
— Mariana, ela é velha… Não ligues.
Mas eu ligava. Ligava porque cada palavra dela era como uma pedra no peito. Comecei a evitar estar em casa. Fazia horas extra no supermercado sempre que podia. O Tiago ficava com ela e eu sentia-me culpada por isso — mas precisava de respirar.
Um sábado à tarde, quando cheguei mais cedo do trabalho, encontrei-os na sala: Dona Lurdes sentada no sofá com o Tiago ao colo, a contar-lhe histórias da aldeia onde crescera. Por um instante vi ternura nos olhos dela e quase senti esperança.
Mas quando me viu à porta, fechou-se logo:
— Já chegou? O menino já jantou.
— Obrigada, Dona Lurdes — murmurei.
À noite, enquanto adormecia o Tiago, ouvi-a discutir ao telefone com alguém:
— Não sei quanto mais aguento isto… Ela não faz nada como deve ser… Esta casa já não é o que era…
Senti-me um peso. Um estorvo na própria casa onde vivia.
No Natal desse ano tentei organizar um jantar especial. Convidei os meus pais de Setúbal e preparei tudo com carinho: bacalhau com natas, rabanadas, arroz doce. Dona Lurdes passou o dia inteiro a resmungar:
— No meu tempo fazia-se polvo à lagareiro… Isto não é Natal…
Durante o jantar mal falou comigo ou com os meus pais. O Rui tentava animar o ambiente mas era impossível ignorar o gelo entre nós.
Depois do Natal comecei a pensar em sair dali de qualquer maneira. Falei com o Rui:
— Precisamos de procurar uma casa só nossa. Nem que seja um T1 pequeno…
Ele abanou a cabeça.
— Não temos dinheiro suficiente… E a minha mãe precisa de nós.
— E eu? Eu também preciso de ti! Preciso de paz!
Ele ficou calado. Pela primeira vez vi nos olhos dele uma dúvida, um medo de perder aquilo que conhecia desde sempre.
Os meses passaram e as discussões tornaram-se rotina. Um dia cheguei a casa e encontrei as minhas roupas atiradas para cima da cama.
— O que é isto? — perguntei à Dona Lurdes.
— Estavam a ocupar espaço no armário do Tiago. Ele precisa das coisas dele arrumadas — respondeu ela friamente.
Senti-me humilhada. Liguei à minha mãe em lágrimas:
— Mãe, não aguento mais…
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Filha, às vezes temos de escolher entre lutar por um lugar ou procurar outro onde sejamos felizes.
Naquela noite dormi pouco. O Rui tentou abraçar-me mas afastei-me. Senti que estava sozinha naquela batalha.
No dia seguinte tomei uma decisão: comecei a procurar casas para arrendar em segredo. Falei com colegas do supermercado e uma delas disse-me que ia sair de um T1 barato em Cacilhas. Fui ver o apartamento: pequeno, velho, mas só nosso.
Juntei coragem e contei ao Rui:
— Encontrei uma casa para nós. Podemos pagar se eu continuar a fazer horas extra.
Ele ficou em silêncio muito tempo antes de responder:
— E a minha mãe?
— A tua mãe vai ter de aprender a viver sem nós sempre por perto… E tu vais ter de escolher: queres continuar preso ao passado ou construir uma família comigo?
Ele chorou nessa noite. Pela primeira vez vi-o vulnerável, dividido entre duas mulheres: a mãe que sempre cuidou dele e eu, que só queria construir algo novo juntos.
No fim acabámos por mudar-nos para Cacilhas. A Dona Lurdes não me perdoou nunca verdadeiramente — mas também nunca mais me humilhou da mesma forma.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem esta luta silenciosa sob o mesmo teto? Quantas sacrificam a própria felicidade por medo de magoar quem amam? Será possível construir uma família sem perdermos quem somos?