“Já não sou a mesma mulher”: A história de Mariana, que se recusa a ser apenas o pano de fundo da família dos outros
— Mariana, por favor, não faças outra vez essa cara. — A voz do Joaquim ecoou pela cozinha, misturando-se com o barulho das crianças a correrem pela sala. — Eles vêm cá só aos fins de semana, custa-te assim tanto?
Apertei os punhos, sentindo as unhas cravarem-se na palma da mão. Não era só o barulho. Era o cheiro a batatas fritas que pairava no ar desde as dez da manhã, era o brinquedo partido no corredor, era a sensação de que cada canto da casa já não me pertencia.
— Não é isso, Joaquim. — Tentei manter a voz baixa, mas ela saiu trémula. — Só queria um pouco de paz. Só um bocadinho.
Ele suspirou, desviando o olhar para a janela. Lá fora, Andreia chegava com os miúdos, o mais novo já a gritar por um gelado. Senti um aperto no peito. Mais uma vez, ia ser eu a preparar tudo, a limpar tudo, a sorrir para não criar problemas.
Quando casei com o Joaquim, há cinco anos, achei que estava pronta para tudo. Tinha quarenta e dois anos, uma carreira estável como professora primária em Setúbal e uma vida tranquila. Ele apareceu como uma lufada de ar fresco: viúvo, gentil, com um sorriso triste e uma filha adulta que vivia sozinha com os filhos pequenos. Achei que ia ser fácil encaixar-me naquela família partida.
Mas ninguém me avisou que ser madrasta era como viver numa casa emprestada.
— Mariana! — Andreia entrou sem bater, como sempre. — Preciso mesmo que fiques com eles um bocadinho. Tenho de ir ao supermercado e o Diogo está impossível hoje.
Antes que eu pudesse responder, ela já estava a largar as mochilas no chão e a dar-me um beijo apressado na face. O Diogo atirou-se para o sofá, já a pedir desenhos animados. A Leonor correu para o meu colo.
— Avó Mariana! — gritou ela, mesmo sabendo que eu não era avó dela.
Sorri-lhe, mas por dentro sentia-me cada vez mais pequena.
Joaquim apareceu à porta da sala com um sorriso orgulhoso.
— Vês? Eles adoram-te.
Mas eu não queria ser adorada. Queria ser vista.
Naquela tarde, enquanto limpava o sumo derramado na mesa e tentava acalmar o Diogo depois de mais uma birra, dei por mim a pensar em como tudo tinha mudado. Antes do Joaquim, os meus fins de semana eram passados entre livros e caminhadas à beira-mar. Agora eram feitos de brinquedos espalhados e vozes altas.
À noite, depois de Andreia levar os miúdos embora e a casa finalmente silenciar-se, sentei-me no sofá com um copo de vinho. Joaquim sentou-se ao meu lado e pousou a mão na minha perna.
— Estás tão calada ultimamente. — disse ele.
— Sinto-me invisível aqui dentro — confessei. — Como se esta casa fosse só deles. Como se eu fosse só… o pano de fundo.
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.
— Mariana… Eles são a minha família.
— E eu? — perguntei num sussurro.
Ele não respondeu.
Na semana seguinte, tentei falar com Andreia. Esperei até ela estar sozinha na cozinha, a arrumar as compras que eu própria tinha ido buscar.
— Andreia… gostava que combinássemos melhor as visitas dos miúdos. Às vezes preciso de algum tempo para mim.
Ela olhou para mim como se eu tivesse dito algo absurdo.
— Mas eles adoram vir cá! E tu és tão boa com eles… O meu pai ficava destroçado se não os visse todos os fins de semana.
Senti-me egoísta. Senti-me má pessoa. Mas também senti raiva: porque é que ninguém perguntava o que eu queria?
Os meses passaram e nada mudou. Pelo contrário: Andreia começou a trazer os miúdos também durante a semana “só por uma horinha” porque tinha aulas de yoga ou precisava de ir ao cabeleireiro. O Joaquim nunca dizia que não. E eu? Eu dizia sempre sim, porque dizer não parecia impossível.
Até ao dia em que me vi ao espelho e quase não me reconheci.
O cabelo apanhado à pressa, olheiras fundas, as roupas escolhidas sem pensar. Onde estava aquela mulher que adorava dançar sozinha na sala? Onde estava aquela Mariana que ria alto e fazia planos para viajar?
Nessa noite, depois do jantar, sentei-me à mesa com Joaquim.
— Preciso falar contigo — disse-lhe.
Ele largou o jornal e olhou para mim com preocupação.
— Eu amo-te — comecei. — Mas sinto que estou a desaparecer nesta casa. Sinto que tudo gira à volta da tua filha e dos teus netos… E eu? Eu sou só aquela que está sempre disponível?
Ele tentou interromper-me, mas levantei a mão.
— Não quero deixar de fazer parte desta família. Mas preciso de espaço para mim. Preciso de ser ouvida também.
Joaquim ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu da sala sem dizer nada.
Chorei baixinho nessa noite. Pela primeira vez em anos, senti medo de perder tudo: o casamento, a casa… mas acima de tudo, senti medo de perder a mim mesma.
No dia seguinte fui trabalhar como sempre. Os colegas notaram o meu ar abatido; a diretora chamou-me ao gabinete e perguntou se estava tudo bem em casa. Hesitei antes de responder.
— Não sei — disse-lhe apenas.
Quando cheguei a casa nesse dia, encontrei Andreia sentada à mesa da cozinha com Joaquim. O ambiente estava pesado; percebi logo que tinham falado sobre mim.
— Mariana — começou Andreia — o pai explicou-me como te tens sentido… Eu não fazia ideia! Pensei mesmo que gostavas de ter os miúdos cá tantas vezes…
Olhei para ela e vi pela primeira vez uma mulher cansada também: mãe solteira, sempre a correr de um lado para o outro, sem tempo para si própria.
— Eu gosto deles — disse-lhe — mas também preciso do meu espaço. Não quero ser só aquela pessoa que está sempre disponível porque sim.
Andreia assentiu devagar.
— Vou tentar organizar melhor as coisas — prometeu ela. — E obrigada por me dizeres isto.
Joaquim ficou em silêncio durante todo o tempo. Só mais tarde veio ter comigo ao quarto.
— Desculpa — disse ele baixinho. — Nunca pensei que estivesses tão infeliz…
Abracei-o com força e chorei outra vez. Mas desta vez foi um choro diferente: um choro de alívio por finalmente ter dito aquilo que me pesava há tanto tempo.
As coisas não mudaram da noite para o dia. Ainda há fins de semana em que me sinto deslocada na minha própria casa; ainda há dias em que digo sim quando queria dizer não. Mas agora já consigo falar sobre isso sem medo de magoar alguém ou ser julgada por querer um pouco de paz.
Aprendi que ser mulher numa família reconstituída é viver entre dois mundos: o da entrega constante e o da necessidade urgente de não desaparecer no meio dos outros.
Hoje olho-me ao espelho e vejo outra Mariana: mais cansada talvez, mas também mais verdadeira consigo mesma.
E pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas? Quantas se anulam para não perturbar a paz dos outros? Será justo termos de escolher entre sermos amadas e sermos vistas?