Quando o Amor se Torna Luta: A Minha História com Rui

— Inês, não percebes que és tu o problema? — O grito de Rui ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café queimado e o som abafado da chuva a bater nas janelas. Eu estava parada, com as mãos trémulas sobre a bancada, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. Não era a primeira vez que ouvia aquelas palavras, mas naquela manhã de novembro, soaram mais cortantes do que nunca.

Lembro-me de pensar: “Como é que cheguei aqui? Como é que o amor se transformou nisto?” Quando conheci o Rui, há cinco anos, ele era tudo o que eu achava querer: divertido, ambicioso, com aquele charme tipicamente português que fazia toda a gente sorrir à sua volta. No início, sentia-me especial ao seu lado. Ele dizia-me: “Inês, contigo sinto-me em casa.” E eu acreditava.

Mas as pequenas críticas começaram cedo. Primeiro eram coisas banais: “Não sabes fazer arroz como a minha mãe” ou “Devias vestir-te de outra maneira para o jantar com os meus amigos”. Eu ria-me, achava graça à sua exigência. Mas com o tempo, as críticas tornaram-se mais frequentes e mais duras.

A minha mãe, Dona Teresa, sempre desconfiou dele. “Filha, cuidado com quem te faz sentir menos”, dizia-me ao telefone, a voz embargada pela preocupação. Mas eu insistia: “Oh mãe, ele só quer o melhor para mim.” O meu pai, António, era mais reservado. Limitava-se a observar Rui em silêncio durante os almoços de domingo, os olhos atentos a cada gesto.

A gota de água foi no Natal passado. Estávamos em casa dos meus pais, rodeados de primos e tios. Rui fez questão de me corrigir à frente de toda a gente quando contei uma história da infância. “Não foi assim, Inês. Estás sempre a exagerar.” Senti o rosto a arder de vergonha. A minha prima Joana apertou-me a mão por baixo da mesa.

Naquela noite, depois de todos irem dormir, sentei-me na varanda com o meu pai. Ele acendeu um cigarro — coisa rara — e disse apenas: “Filha, não deixes ninguém apagar quem tu és.” Fiquei em silêncio, mas aquelas palavras ficaram comigo.

Os meses seguintes foram uma sucessão de altos e baixos. Rui alternava entre momentos de carinho e explosões de raiva. Quando discutíamos, ele fazia-me sentir culpada: “Se fosses mais compreensiva… Se não fosses tão teimosa…” Eu tentava agradar-lhe: mudei o cabelo, comecei a cozinhar receitas da mãe dele, deixei de sair tanto com as minhas amigas.

Mas nada era suficiente. Um dia cheguei a casa mais tarde do trabalho — sou enfermeira num hospital público em Lisboa — e encontrei-o à minha espera na sala.

— Achas normal chegares a esta hora? — perguntou ele, voz fria.

— Houve uma emergência no hospital… — tentei explicar.

— Sempre desculpas! — gritou ele, atirando o comando da televisão para o sofá.

Senti um nó no estômago. O medo começou a instalar-se nos pequenos gestos: hesitava antes de falar, pensava duas vezes antes de rir alto demais ou partilhar uma opinião diferente da dele.

A minha melhor amiga, Marta, percebeu logo que algo não estava bem. Um sábado à tarde arrastou-me para um café no Chiado.

— Inês, tu já não és tu — disse ela, olhos cheios de lágrimas. — Tens medo dele?

Fiquei calada. Não queria admitir nem para mim mesma.

O tempo foi passando e comecei a sentir-me cada vez mais sozinha dentro daquela relação. Rui isolava-me dos meus amigos, criticava os meus pais e fazia-me duvidar do meu próprio valor. Uma noite acordei sobressaltada com um pesadelo: sonhei que estava presa numa casa sem janelas nem portas.

Foi aí que percebi que tinha de mudar alguma coisa.

Comecei devagarinho a recuperar pedaços de mim. Voltei a sair com Marta às escondidas. Inscrevi-me num curso de fotografia ao sábado de manhã — Rui odiava fotografia e nunca quis saber das minhas paixões.

Um dia trouxe para casa uma fotografia que tirei no Miradouro de Santa Catarina: Lisboa ao entardecer, dourada e livre. Coloquei-a na sala sem pedir autorização.

Quando Rui chegou e viu a fotografia na parede, ficou furioso.

— Quem te deu permissão para pendurar isto aqui?

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo e respondi:

— Não preciso da tua permissão para ser eu mesma.

Ele ficou sem palavras. Pela primeira vez senti-me maior do que ele.

Naquela noite dormi pouco. O coração batia descompassado, mas não era medo — era esperança.

No dia seguinte fui trabalhar como sempre. No hospital, uma senhora idosa segurou-me na mão e disse:

— Menina Inês, nunca deixe ninguém dizer-lhe quem deve ser.

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos. Era como se todos à minha volta me estivessem a dar sinais para acordar.

Quando cheguei a casa nessa noite, Rui estava sentado no sofá, olhar perdido na televisão desligada.

— Temos de falar — disse eu, sentando-me à sua frente.

Ele olhou para mim com desdém:

— Vais começar outra vez?

Respirei fundo:

— Rui, acabou. Não quero mais isto para mim. Quero voltar a ser feliz.

Ele riu-se:

— Vais arrepender-te. Ninguém te vai querer como eu te quis.

Levantei-me devagarinho:

— Prefiro estar sozinha do que continuar a perder-me todos os dias ao teu lado.

Arrumei algumas roupas numa mala pequena e fui dormir a casa dos meus pais nessa noite. A minha mãe chorou quando me viu chegar à porta; o meu pai abraçou-me em silêncio.

Os dias seguintes foram difíceis. Senti falta do Rui — ou melhor, senti falta da ideia que tinha dele no início. Mas aos poucos fui recuperando o brilho nos olhos. Voltei a rir alto com Marta, passei fins-de-semana na praia com os meus primos e tirei fotografias por toda Lisboa.

Recebi mensagens do Rui durante semanas: insultos misturados com pedidos de desculpa. Apaguei tudo sem responder.

Hoje olho para trás e vejo o quanto cresci desde então. Aprendi que amor não é sinónimo de dor nem de sacrifício constante. Aprendi a gostar de mim outra vez.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em relações assim? Quantas têm medo de dizer basta? E vocês… já tiveram coragem de escolher vocês próprios em vez do medo?