O Primeiro Ordenado: Um Presente Esquecido e as Feridas do Tempo
— Mãe, por favor, ouve-me! — gritei, com a voz embargada, enquanto ela fechava a porta do quarto com força. O som ecoou pelo corredor frio da nossa casa em Almada, como se quisesse selar para sempre o que eu acabara de dizer.
Naquele dia, tinha acabado de receber o meu primeiro ordenado. Dezassete anos, aprendiz numa oficina de bicicletas, mãos sujas de óleo e o coração cheio de esperança. O dinheiro não era muito — 120 escudos — mas para mim era uma fortuna. Lembro-me de ter contado as notas uma a uma, sentado na paragem do autocarro, sentindo-me finalmente alguém capaz de ajudar em casa.
Quando cheguei, a minha mãe estava na cozinha, a descascar batatas para o jantar. O cheiro do estufado misturava-se com o aroma do sabão azul e branco. Ela olhou para mim, cansada, mas com um sorriso que só as mães sabem dar.
— Trouxe-te isto — disse eu, estendendo-lhe o envelope castanho. — É o meu primeiro ordenado. Quero que fiques com ele.
Ela ficou imóvel por um segundo, como se não acreditasse. Depois, abraçou-me com força. Senti as lágrimas dela molharem-me o ombro.
— Obrigada, filho. És o meu orgulho — sussurrou.
Naquele momento, pensei que nada nos poderia separar. Mas estava enganado.
Os anos passaram. O meu pai, António, nunca foi homem de grandes palavras. Trabalhava no cais de Lisboa e chegava sempre tarde, cheirando a tabaco e maresia. Entre ele e a minha mãe havia silêncios pesados, discussões abafadas pela parede fina do meu quarto. Eu tentava não ouvir, mas era impossível.
A minha irmã mais nova, Leonor, era a alegria da casa. Mas também ela sentia o peso das discussões. Muitas vezes fugíamos juntos para o quintal, inventando brincadeiras para esquecer os gritos.
Quando fiz vinte anos, decidi sair de casa. Fui trabalhar para o Porto, numa fábrica de bicicletas maior. Escrevia cartas à minha mãe todas as semanas. Ela respondia sempre com palavras doces e notícias da terra.
Mas algo mudou quando voltei para Almada depois de dez anos. A casa parecia mais pequena, os silêncios mais longos. O meu pai estava doente e a minha mãe envelhecera vinte anos em dez. Leonor tinha casado e mudado para Faro.
Numa noite chuvosa de novembro, sentei-me com a minha mãe à mesa da cozinha.
— Mãe, lembras-te daquele envelope que te dei? O meu primeiro ordenado?
Ela olhou para mim com olhos vazios.
— Não sei do que falas, filho.
Fiquei magoado. Como podia ela esquecer aquele momento? Aquilo era tudo para mim.
A vida seguiu o seu curso. O meu pai morreu pouco depois e a minha mãe foi viver com Leonor no Algarve. Eu fiquei sozinho em Almada, preso às memórias e aos fantasmas da infância.
Sessenta e dois anos passaram desde aquele dia em que entreguei o envelope à minha mãe. Agora, já reformado e com os netos a correrem pela casa, decidi vender a velha casa dos meus pais. Fui lá sozinho, numa tarde de outono.
O cheiro a mofo misturava-se com o pó dos móveis cobertos por lençóis amarelecidos. Abri gavetas, caixas velhas, encontrei fotografias desbotadas e cartas que nunca enviei.
Foi então que vi uma caixa de sapatos escondida no fundo do armário do quarto da minha mãe. Dentro dela estavam recortes de jornais antigos, um terço partido… e um envelope castanho.
As minhas mãos tremiam quando o abri. Lá dentro estavam as notas antigas do meu primeiro ordenado — intactas, como se tivessem sido guardadas ontem.
Senti um nó na garganta. Porque é que ela nunca gastou aquele dinheiro? Porque é que fingiu não se lembrar?
Peguei no telefone e liguei à Leonor.
— Encontrei o envelope do meu primeiro ordenado — disse-lhe, sem conseguir conter as lágrimas.
Do outro lado ouvi um silêncio pesado.
— O que é que isso interessa agora? — respondeu ela, fria. — A mãe já não está cá para te explicar nada.
— Mas eu preciso de saber! — insisti. — Porque é que ela guardou isto todos estes anos?
Leonor suspirou.
— Talvez fosse a única coisa tua que ela podia guardar só para ela. Sabes bem que o pai nunca lhe deu paz…
Fiquei a pensar nas palavras da minha irmã durante dias. Será que a minha mãe guardou aquele envelope como símbolo do amor que nunca pôde mostrar abertamente? Ou foi apenas mais uma recordação entre tantas outras?
Na semana seguinte fui ao cemitério levar flores ao túmulo dos meus pais. Sentei-me na relva húmida e falei baixinho:
— Mãe, perdoa-me se alguma vez duvidei do teu amor. Agora percebo que há gestos que valem mais do que palavras ou lembranças gastas pelo tempo.
Ao regressar a casa, sentei-me à janela a ver os netos brincarem no jardim. O envelope estava pousado na mesa ao meu lado — símbolo de tudo o que ficou por dizer entre mim e a minha mãe.
Pergunto-me: quantas coisas guardamos em silêncio ao longo da vida? E quantas vezes deixamos que o orgulho ou o medo nos impeçam de perguntar aquilo que realmente importa?
E vocês? Já descobriram algum segredo de família tarde demais?