Quando o Meu Genro Virou o Meu Mundo do Avesso
— Não vou pedir ao Rui. Sabes como ele fica… — Mariana sussurrou, os olhos baixos, enquanto eu tentava equilibrar quatro sacos de compras no átrio húmido do supermercado.
A chuva batia forte nos vidros. O cheiro a terra molhada misturava-se com o perfume barato das flores à venda na entrada. Eu sentia as mãos a tremer, não só do peso dos sacos, mas do peso da solidão. Desde que o António morreu, há três anos, tudo parecia mais difícil. Até pedir ajuda.
— Mariana, não consigo levar isto tudo no autocarro — disse, tentando não deixar transparecer o desespero na voz. — O Rui está em casa, não está? Só preciso que ele me venha buscar.
Ela hesitou. Vi-lhe o rosto fechar-se como uma porta trancada. — Ele vai resmungar… Vai dizer que está cansado, que não é motorista de ninguém.
— Mas és tu que tens medo dele ou és tu que não queres incomodar? — perguntei, mais dura do que queria.
Mariana mordeu o lábio. — Não é medo… Só não quero discussões. Já chega o que temos.
Suspirei. O silêncio entre nós era tão pesado como os sacos. Olhei para ela e vi a menina que criei sozinha, depois do pai nos ter deixado por outra mulher. Vi-lhe a força e a fragilidade. E vi-me a mim, tantas vezes calada para evitar guerras.
— Eu falo com ele — disse por fim, sentindo o coração acelerar.
O caminho até à porta do prédio deles pareceu-me uma travessia no deserto. A chuva caía-me no rosto, fria como as palavras que sabia que me esperavam. Toquei à campainha com a mão dorida. O Rui abriu a porta com ar aborrecido, de t-shirt e calças de fato de treino.
— Ah… Dona Teresa. O que foi agora?
Respirei fundo. — Rui, preciso que me leves a casa. Tenho demasiadas compras para levar no autocarro.
Ele olhou para mim como se eu fosse um incómodo. — Não podia ter avisado antes? Estava a ver o jogo.
— Não sabia que ia chover tanto — respondi, tentando manter a voz calma.
Ele bufou. — Está bem… Vou buscar as chaves.
No carro, o silêncio era cortante. As gotas batiam no vidro como dedos impacientes. Olhei para as mãos dele no volante: grandes, nervosas. Senti vontade de chorar, mas engoli as lágrimas.
— Sabe, Dona Teresa… — começou ele de repente — Eu não sou mau tipo. Só estou cansado. O trabalho anda uma porcaria, a Mariana está sempre triste… E depois ainda tenho de ser motorista da família.
Olhei-o de lado. — Ninguém lhe pede para ser motorista. Só precisamos uns dos outros de vez em quando.
Ele riu-se sem humor. — Pois… Mas parece que nunca chega. A sua filha acha sempre que eu devia fazer mais.
— E acha que ela não faz? — perguntei, sentindo a raiva crescer-me no peito. — A Mariana trabalha todo o dia, cuida da casa, dos miúdos… E ainda tem de adivinhar o seu humor?
Ele apertou o volante com força. — Não percebe… Eu cresci sem pai. A minha mãe fazia tudo sozinha e nunca se queixava. Agora parece que tudo é um drama.
— Talvez porque agora há quem ouça as queixas — disse eu baixinho.
Ele ficou calado o resto do caminho. Quando chegámos à minha rua, ajudou-me a levar os sacos até à porta sem dizer palavra. Antes de se ir embora, parou e olhou-me nos olhos pela primeira vez.
— Desculpe se sou bruto às vezes… Não sei ser diferente.
— Todos podemos aprender — respondi, tocando-lhe no braço.
Naquela noite, sentei-me sozinha na cozinha, com uma chávena de chá nas mãos trémulas. Oiço muitas vezes o silêncio da casa como se fosse uma presença viva: o tique-taque do relógio, o vento nas janelas, os passos dos vizinhos no andar de cima.
Pensei na Mariana e no Rui fechados cada um na sua dor, incapazes de pedir ajuda um ao outro. Pensei em mim mesma, tantas vezes calada por medo de incomodar ou de ser rejeitada.
No dia seguinte, Mariana ligou-me cedo.
— O Rui chegou diferente ontem… Disse-me que talvez devêssemos falar mais sobre as coisas. Que talvez eu também precise de ajuda às vezes.
Senti um nó na garganta. — E tu? O que disseste?
— Que sim… Que estou cansada de fingir que está tudo bem quando não está.
Houve um silêncio doce do outro lado da linha. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Os dias seguintes foram estranhos: Mariana vinha mais vezes a minha casa; Rui passou a ligar-me para saber se precisava de alguma coisa; até os meus netos pareciam menos ansiosos quando estavam todos juntos.
Mas nem tudo mudou de um dia para o outro. Houve discussões feias: sobre dinheiro, sobre quem faz mais em casa, sobre os sogros do Rui que nunca ligam aos netos. Uma noite ouvi-os gritar pelo telefone:
— Se não gostas da minha mãe, diz-me na cara! — Mariana chorava.
— Não é isso! Só estou farto de ser sempre eu o mau da fita! — Rui gritava do outro lado.
Eu queria intervir mas calei-me. Aprendi que há dores que cada um tem de resolver sozinho.
Um domingo à tarde, enquanto fazíamos arroz doce na minha cozinha pequena demais para três pessoas adultas e duas crianças traquinas, Mariana olhou para mim com olhos vermelhos:
— Mãe… Achas que estamos condenados a ser infelizes?
Abracei-a com força. — Ninguém está condenado a nada. Mas temos de querer mudar… e perdoar-nos uns aos outros pelos erros todos os dias.
Rui entrou na cozinha nesse momento com um ramo de flores baratas e um sorriso tímido:
— Trouxe isto para ti… E para pedir desculpa por ontem.
Mariana sorriu-lhe entre lágrimas e riu-se do gesto desajeitado dele. Os miúdos correram para abraçar as pernas do pai e eu senti uma paz estranha invadir-me o peito.
Naquela noite escrevi no meu diário:
“A vida é feita destes pequenos gestos: um ramo de flores baratas, um pedido de desculpa sincero, uma mão estendida quando menos esperamos. Talvez nunca sejamos uma família perfeita… Mas talvez isso nem exista realmente.”
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? Quantas vezes calamos aquilo que nos dói por medo de perder quem amamos? Será possível recomeçar mesmo depois de tantos desencontros?
E vocês? Já tiveram de engolir o orgulho para salvar uma relação? O que fariam diferente se pudessem voltar atrás?