Entre Dois Mundos: Filha, Esposa e o Apartamento que Separou o Amor
— Mariana, não insistas mais nisto! — gritou o Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do café frio e do pão torrado esquecido. Eu olhava para ele, sentindo o peito apertado, as palavras presas na garganta. — A tua mãe precisa de cuidados, mas aqui não é lugar para ela. Já falámos disto mil vezes!
A minha mão tremia enquanto segurava a chávena. O relógio marcava sete da manhã, mas eu já estava exausta. Desde que a minha mãe teve o AVC, há três meses, a nossa vida virou um campo de batalha. O Rui nunca gostou da minha mãe — dizia que ela era controladora, que se metia demasiado na nossa vida. Mas agora, com ela tão frágil, como podia eu deixá-la sozinha?
— Rui, ela não tem mais ninguém — sussurrei, quase sem voz. — O meu irmão está em França, só liga de vez em quando. Se não for eu…
Ele interrompeu-me com um gesto brusco. — Não quero saber! Isto é a nossa casa! Já basta teres passado a infância toda a viver para ela. Agora tens de pensar em nós, na nossa filha! — apontou para o quarto onde a Leonor dormia.
Senti uma onda de raiva e culpa. Era verdade: a Leonor tinha só cinco anos e precisava de mim. Mas a minha mãe… Lembrei-me dela a ensinar-me a andar de bicicleta no jardim da escola primária de Setúbal, das noites em que me embalava quando tinha febre. Como podia eu virar-lhe as costas agora?
O telefone tocou. O som cortou o silêncio pesado. Era a enfermeira do lar temporário onde a minha mãe estava desde o hospital.
— Dona Mariana? A sua mãe está muito agitada hoje. Pergunta por si sem parar…
A voz dela soava distante, como se viesse debaixo de água. Prometi passar lá depois do trabalho, desliguei e olhei para o Rui. Ele já estava de costas, a arrumar os pratos com força desnecessária.
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os papéis acumulavam-se na secretária da repartição de finanças, mas os meus pensamentos estavam sempre com a minha mãe. A chefe chamou-me à parte.
— Mariana, tens estado distraída… Precisas de uns dias?
Sorri sem vontade. Dias? O que eu precisava era de uma solução impossível.
À noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me no sofá ao lado do Rui. Ele estava colado ao telemóvel, a ver vídeos de futebol.
— Rui… Podemos falar?
Ele suspirou alto.
— Outra vez? Já sei o que vais dizer.
— Não sabes — respondi, tentando controlar as lágrimas. — Só queria que tentasses compreender… Ela é minha mãe. Não posso deixá-la num lar qualquer. Ela sente-se sozinha, tem medo…
Ele largou o telemóvel e olhou-me nos olhos.
— E eu? E nós? Achas justo trazer para cá uma pessoa doente, que vai precisar de ti vinte e quatro horas por dia? E a Leonor? Achas que é bom para ela?
As palavras dele eram facas. Sabia que tinha razão em parte — a Leonor já tinha medo de hospitais desde que visitara a avó no lar. Mas como podia eu escolher?
Na semana seguinte, visitei vários apartamentos para alugar perto da nossa casa. Todos caros demais para o nosso orçamento. Liguei ao meu irmão Luís em Lyon.
— Mariana, não posso largar tudo agora… Tenho dois empregos aqui! — disse ele, irritado. — Faz como achares melhor.
Desliguei com vontade de gritar. Sempre fui eu a resolver tudo.
Nessa noite sonhei com a minha mãe jovem, rindo-se comigo à beira-mar em Sesimbra. Acordei com lágrimas nos olhos.
No sábado seguinte, levei a Leonor ao lar para ver a avó. A minha mãe estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, olhando para fora com olhos perdidos.
— Mãe… — chamei baixinho.
Ela sorriu ao ver-nos, mas logo começou a chorar.
— Mariana… Leva-me contigo… Por favor…
A Leonor agarrou-se à minha perna, assustada.
No carro, depois da visita, ela perguntou:
— Mamã, porque é que a avó não pode vir morar connosco?
Engoli em seco.
— Porque às vezes as pessoas precisam de cuidados especiais…
Ela ficou calada o resto do caminho.
Em casa, o Rui esperava-me com cara fechada.
— Foste vê-la outra vez? — perguntou seco.
Assenti.
— Não aguento mais isto — disse ele de repente. — Ou resolves isto ou… não sei se consigo continuar assim.
O chão fugiu-me dos pés. Estava mesmo sozinho nisto?
Na semana seguinte, encontrei um pequeno T1 num prédio antigo perto da nossa rua. O senhorio era simpático e fez um preço razoável. Falei com o Rui à noite.
— Encontrei um apartamento para ela — disse-lhe, cansada.
Ele pareceu aliviado.
— Vês? Assim todos ficam melhor.
Mas eu sabia que não era verdade. Passei dias a tratar da mudança da minha mãe para o novo apartamento: móveis velhos doados por vizinhos, uma cama articulada emprestada pelo centro de saúde, uma televisão pequena para lhe fazer companhia.
No dia da mudança, ela olhou-me com olhos tristes.
— Mariana… Não me deixes sozinha aqui…
Abracei-a com força.
— Vou vir todos os dias, prometo…
Mas sabia que era mentira: entre o trabalho, a Leonor e as tarefas da casa, mal teria tempo para respirar.
As semanas passaram num turbilhão de cansaço e culpa. O Rui parecia mais feliz; até voltou a rir-se comigo à mesa. Mas eu sentia-me cada vez mais vazia.
Um dia cheguei ao apartamento da minha mãe e encontrei-a caída no chão da cozinha. Tinha tentado levantar-se sozinha e escorregou.
Chamei uma ambulância; passei horas no hospital ao lado dela enquanto dormia sedada. Senti-me uma criança outra vez: impotente e perdida.
Quando finalmente voltei para casa nessa noite, o Rui estava à minha espera na sala escura.
— Isto não pode continuar assim — disse ele baixo. — Vais acabar por te destruir…
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Talvez já esteja destruída — respondi baixinho.
Naquela noite não dormi. Pensei em tudo: na infância sacrificada pela doença do meu pai; na adolescência passada entre hospitais; no casamento apressado porque queria fugir daquela casa sufocante; na esperança vã de que tudo mudasse quando tivesse uma família própria.
Mas ali estava eu: presa entre dois mundos que nunca se tocariam.
No dia seguinte pedi baixa médica por exaustão nervosa. Passei dias em casa sem conseguir sair da cama. O Rui cuidou da Leonor sem reclamar; até me trouxe chá à cama uma vez ou outra.
Uma tarde ouvi-o falar ao telefone com alguém:
— Não sei o que fazer… Ela está a desaparecer aos poucos…
Senti pena dele — e de mim própria também.
Quando finalmente voltei ao trabalho e à rotina das visitas à minha mãe, já nada era igual. Ela estava mais fraca; às vezes nem me reconhecia logo.
Um domingo à tarde sentei-me ao lado dela na varanda do apartamento minúsculo e segurei-lhe a mão ossuda.
— Mãe… Desculpa se não consigo estar sempre aqui…
Ela sorriu levemente e apertou-me os dedos.
— Fizeste tudo o que podias, filha…
Chorei baixinho enquanto ela adormecia ao meu lado.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivesse lutado mais? Ou menos? Será possível amar dois mundos sem perdermos nós próprios pelo caminho?