Quando a Sala de Aula se Torna um Campo de Batalha: O Meu Silêncio, a Minha Luta e a Minha Família

— Dona Teresa, posso ir à casa de banho? — perguntei, sentindo o suor frio escorrer-me pela testa. O meu estômago dava voltas e as letras no quadro misturavam-se numa dança cruel. Ela nem sequer olhou para mim.

— Tiago, não interrompas. Já devias ter ido antes da aula — respondeu, com aquela voz cortante que me fazia encolher na cadeira. Os meus colegas riram-se baixinho. Senti-me pequeno, invisível, como se o chão me puxasse para baixo.

A sala estava abafada, o cheiro a giz misturado com perfume barato e o calor dos corpos adolescentes. O relógio marcava dez minutos para o intervalo, mas eu sabia que não ia aguentar. Tentei concentrar-me na voz da professora, mas tudo se tornou um zumbido distante. As palavras dela eram como pedras lançadas contra mim.

— Tiago, estás a ouvir? — perguntou ela de repente, impaciente.

Tentei responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Senti o mundo girar e, num instante, tudo ficou escuro.

Quando acordei, estava deitado no chão frio da sala. Os meus colegas olhavam para mim com olhos arregalados, alguns riam-se nervosamente. Dona Teresa estava de braços cruzados, impaciente.

— Isto é só teatro — murmurou ela, alto o suficiente para todos ouvirem. — Levanta-te e vai lavar a cara.

Senti as lágrimas a quererem sair, mas engoli-as com força. Levantei-me devagar, as pernas trémulas. Ninguém me ajudou. Saí da sala sozinho, sentindo-me mais sozinho do que nunca.

No corredor, encostei-me à parede e respirei fundo. O coração batia descompassado. Lembrei-me da minha mãe, que sempre dizia para eu ser forte, para não mostrar fraqueza. Mas naquele momento só queria desaparecer.

Quando cheguei a casa nesse dia, o meu pai estava sentado à mesa da cozinha, com os papéis do trabalho espalhados à frente dele. Olhou para mim e percebeu logo que algo não estava bem.

— O que se passou? — perguntou ele, largando tudo.

Contei-lhe tudo, entre soluços e silêncios. Ele ouviu-me até ao fim, sem interromper. Quando terminei, ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Isto não pode ficar assim — disse finalmente, com uma voz que eu raramente ouvia. — Amanhã vou falar com a escola.

Na manhã seguinte, fomos juntos ao colégio. O diretor, Sr. Álvaro, recebeu-nos com um sorriso forçado.

— O Tiago tem tido algumas dificuldades de adaptação — começou ele, olhando para mim como se eu fosse um problema a resolver.

O meu pai não se deixou intimidar.

— O meu filho pediu ajuda e foi ignorado. Desmaiou na sala de aula e ninguém fez nada. Isto é inadmissível.

O diretor tentou minimizar:

— Os professores têm muitos alunos… Às vezes é difícil perceber quando um pedido é urgente…

O meu pai interrompeu-o:

— Não é difícil perceber quando uma criança está em sofrimento! O que vão fazer para garantir que isto não volta a acontecer?

O silêncio instalou-se na sala. O diretor prometeu averiguar, mas eu vi nos olhos dele que nada ia mudar.

Nos dias seguintes, tornei-me invisível na escola. Os colegas cochichavam quando eu passava. A professora olhava para mim com desdém. Senti-me traído por todos: pelos adultos que deviam proteger-me, pelos amigos que se afastaram.

Em casa, o ambiente ficou tenso. O meu pai queria justiça; a minha mãe só queria paz.

— António, não compliques mais as coisas — dizia ela à noite, quando pensava que eu não ouvia. — O Tiago precisa de estabilidade.

— O Tiago precisa de respeito! — respondia ele, cada vez mais zangado.

As discussões tornaram-se rotina. Eu fechava-me no quarto e punha os fones nos ouvidos para não ouvir os gritos. Sentia-me culpado por ser o motivo daquela guerra silenciosa entre eles.

Uma noite, ouvi-os discutir mais alto do que nunca.

— Se não defendermos o nosso filho agora, quando é que o vamos fazer? — gritou o meu pai.

— E se ele ficar ainda mais isolado? E se os professores lhe fizerem a vida negra? — chorou a minha mãe.

Na manhã seguinte, encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha com os olhos vermelhos.

— Desculpa por tudo isto — disse ela baixinho. — Só quero proteger-te.

Abracei-a com força. Pela primeira vez em semanas chorei sem vergonha.

Os meses passaram devagar. A escola abriu um inquérito interno que não deu em nada. A professora continuou igual; os colegas esqueceram-se do episódio e voltaram às suas vidas.

Mas eu nunca mais fui o mesmo. Aprendi a desconfiar dos adultos; aprendi que o silêncio pode ser mais cruel do que qualquer palavra dura.

O meu pai nunca desistiu de lutar por mim. Procurou psicólogos, mudou-me de turma no ano seguinte e fez questão de me lembrar todos os dias que eu tinha valor.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos miúdos passam pelo mesmo sem ninguém saber? Quantos pais desistem de lutar porque têm medo de represálias?

Será que algum dia vamos aprender a ouvir verdadeiramente as crianças? Ou vamos continuar a fingir que está tudo bem enquanto elas gritam em silêncio?