No Olhar de Inês: Entre o Amor e o Silêncio
— Rui, com quem falavas agora? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo que o coração me batesse tão alto que quase abafava as palavras.
Ele hesitou, olhou para o chão e respondeu num tom baixo:
— Era só o Miguel, do trabalho. Coisas do escritório.
Mas eu sabia. Sabia porque a voz dele mudava quando mentia. Porque os olhos dele nunca encontravam os meus. E porque, naquela noite fria de janeiro, eu já tinha visto a mensagem no telemóvel: “Sinto a tua falta. Não aguento esperar até amanhã. — Sofia”.
O nome dela era como uma faca. Sofia. Uma colega do escritório, sempre sorridente, sempre com uma palavra doce para todos. Eu nunca tinha sentido ciúmes dela — até aquele momento.
A partir daí, tudo mudou. Os dias tornaram-se mais longos, as noites mais curtas. Passei a analisar cada gesto do Rui: o modo como se despedia de mim de manhã, a pressa com que desligava o computador ao chegar a casa, o sorriso forçado quando eu lhe perguntava como tinha corrido o dia.
A nossa filha, Matilde, de apenas oito anos, percebia que algo não estava bem. Uma noite, enquanto eu lhe penteava o cabelo antes de dormir, ela perguntou:
— Mamã, porque é que tu e o papá já não riem juntos?
O nó na garganta apertou-se ainda mais. Não podia contar-lhe a verdade. Não podia contar-lhe que o mundo seguro que ela conhecia estava prestes a desmoronar-se.
Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava a exagerar? Será que era só uma amizade? Mas as mensagens continuavam a aparecer — sempre apagadas rapidamente, mas nem sempre rápido o suficiente para escapar ao meu olhar atento.
Uma tarde, decidi segui-lo. Senti-me ridícula, escondida atrás de um poste junto ao café onde ele dizia ir ter com um cliente. Vi-o entrar e, pouco depois, vi Sofia chegar. Sentaram-se juntos, demasiado próximos para serem apenas colegas. Ela tocou-lhe no braço e ele sorriu-lhe de uma forma que já não sorria para mim há meses.
Quando voltou para casa nessa noite, enfrentei-o:
— Rui, chega de mentiras. Eu vi-te com ela.
Ele ficou pálido. Sentou-se à mesa da cozinha e passou as mãos pelo cabelo.
— Inês… Eu não queria magoar-te. Não sei como isto aconteceu. Começou como uma amizade… Eu sentia-me sozinho, tu estavas sempre tão cansada com o trabalho e com a Matilde…
As palavras dele eram facas. Cada justificação era uma ferida nova.
— E achas que eu não me sinto sozinha? Achas que é fácil cuidar de tudo sozinha? — gritei, incapaz de conter as lágrimas.
Ele chorou também. Pela primeira vez em anos vi-o chorar à minha frente.
— Eu não quero perder-te, Inês. Não quero perder a nossa família.
Mas as palavras já não chegavam. O silêncio instalou-se entre nós como uma parede intransponível.
Nos dias seguintes tentei agir normalmente por causa da Matilde. Levava-a à escola, fazia-lhe o lanche preferido, lia-lhe histórias antes de dormir. Mas por dentro sentia-me vazia.
A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem quando me viu chegar à aldeia para um fim de semana.
— O Rui não veio? — perguntou ela, olhando-me nos olhos.
Abanei a cabeça e desatei a chorar no colo dela, como quando era criança.
— Ele tem outra — sussurrei.
Ela ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:
— O teu pai também me traiu uma vez. Eu perdoei-o. Não foi fácil, mas hoje sei que fiz bem. Só tu podes decidir se consegues perdoar.
Essas palavras ficaram comigo nos dias seguintes. Perdoar? Seria eu capaz?
Rui tentou tudo para reconquistar-me: flores, mensagens, jantares improvisados em casa depois de pôr a Matilde a dormir. Mas eu já não sabia se queria voltar a ser “nós” ou se devia aprender a ser só “eu”.
Uma noite, depois de Matilde adormecer, sentei-me com ele na sala escura.
— Rui, eu preciso de saber se ainda me amas ou se só tens medo de ficar sozinho.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo:
— Eu amo-te, Inês. Fui um cobarde. Tive medo de te perder e acabei por fazer exatamente aquilo que podia afastar-te para sempre.
Chorámos juntos nessa noite. Pela dor, pela vergonha, pelo amor que ainda resistia no meio dos escombros.
Decidimos procurar ajuda juntos — terapia de casal na vila vizinha. Não foi fácil ouvir as verdades duras sobre nós próprios. Descobri que também tinha deixado de ouvir o Rui há muito tempo; que as rotinas tinham matado os nossos sonhos partilhados; que ambos tínhamos deixado de lutar pelo “nós” enquanto tentávamos sobreviver ao dia-a-dia.
Aos poucos fomos reconstruindo alguma confiança. Não foi um conto de fadas — houve recaídas, discussões feias à porta fechada enquanto Matilde via desenhos animados na sala ao lado. Houve noites em que dormimos costas voltadas e manhãs em que quase desistimos.
Mas também houve pequenos milagres: um bilhete escondido na lancheira da Matilde com um “gosto muito de ti” desenhado por ela; um abraço inesperado na cozinha; um passeio à beira-mar num domingo cinzento em que finalmente voltámos a rir juntos.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que começou esta história: mais forte, menos ingénua, mas também mais capaz de amar — mesmo sabendo dos riscos e das dores que isso implica.
Pergunto-me muitas vezes: será possível reconstruir o amor depois da traição? Ou será apenas uma ilusão confortável para quem tem medo da solidão? Talvez nunca saiba a resposta certa — mas sei que valeu a pena tentar.
E vocês? Já sentiram o chão fugir-vos dos pés? O que fariam se estivessem no meu lugar?